Corpo e política
Como a mídia veste a política

Na era da internet e da imagem, as relações entre corpo e política passam a ser cada vez mais estreitas. A aparência de chefes governo, sobretudo quando mulheres, transforma-se rapidamente em assunto de ordem nacional, refletindo questões de gênero que permeiam a vida em sociedade.
Um dos assuntos mais comentados nas redes sociais sobre a posse de Dilma Rousseff, no dia 1° de janeiro de 2015, não teve nada a ver com política. No caso, o que os internautas mais discutiram, entre elogios e piadas, foi o vestido rendado escolhido pela presidente brasileira para a cerimônia em que assumiu o segundo mandato.
A imprensa nacional também se rendeu ao tema. Na matéria “Look de Dilma na posse divide estilistas famosos”, da edição de 5 de janeiro do jornal Folha de S. Paulo, em meio às considerações dos colegas sobre cor, tecido e caimento do figurino presidencial, o estilista mineiro Ronaldo Fraga pontuou: “Sinceramente, essa relação com as medidas e o look prova o momento sórdido de inversão de valores que vivemos no país. Ela vai ter problemas muito mais sérios pra resolver a partir de agora do que a roupa que veste”.
O controle do corpo
Para além da futilidade e maledicência, o imbróglio envolvendo o vestido da presidente ilumina a longeva relação entre corpo e política. “De certo modo, a política sempre foi um lugar do espetáculo físico, de sua apoteose ou ruína, tal qual quase sempre foi o show esportivo”, explica Denise Bernuzzi de Sant’ Anna, professora do departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autora de livros como Políticas do Corpo (editora Estação Liberdade).“Nas artes do governo, desde o início da era moderna, no século XVII, tem-se esta habilidade a ser aprendida: para governar é preciso saber como mostrar o corpo, o que vestir em cada situação, quais gestos exibir e quais deles devem ser reservados, contidos, modificados. O controle do corpo parece indicar que o governo sabe controlar uma cidade, uma nação”.
Questão de gênero
No episódio do vestido da presidente brasileira outro ingrediente entra em jogo para apimentar a discussão: a questão de gênero. “Esses cargos políticos são considerados vitrines importantes das intenções e dos limites de cada governante, mas quando se trata de uma mulher, a atenção parece redobrada”, observa Sant’ Anna. De fato. Na esfera da América do Sul, por exemplo, vale lembrar que a atual presidente da Argentina, Cristina Kirchner, vive sendo tachada de “cafona” e “inadequada” em função de suas roupas e maquiagem, enquanto a presidente do Chile, Michelle Bachelet, reclamou em uma entrevista que por ser mulher era tachada de “a gorda malvestida”, enquanto os homens mais cheinhos ganhavam a alcunha de “fortes”. E nem mesmo a poderosa premiê alemã Ângela Merkel se livrou de ter a maneira de vestir discutida em público.Corpo na mídia
A professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Lígia Lana, concorda. Especialista em questões de gênero e mídia, a estudiosa acredita que isso ocorra porque a ocupação do espaço público pela mulher ainda seja muito recente do ponto de vista histórico. “Ao longo dos séculos, a mulher sempre esteve associada ao espaço doméstico e as únicas representantes femininas que circulavam pelo espaço público eram as prostitutas, que estavam associadas ao corpo”, diz. “A partir do século 17, com o início da Modernidade, começam a aparecer profissionais como vendedoras, enquanto as mulheres burguesas passam a frequentar galerias de compra e salões de chá. Mas só no início dos século 20 as mulheres conquistam o direito de votar e, assim, se candidatar a cargos eletivos”.Outro tópico que deve ser levado em conta nessa discussão é que o guarda-roupa feminino oferece uma gama maior de possibilidades em relação à indumentária masculina. “Mulheres podem usar vestido de vários comprimentos, modelos e cores, calças, ternos, com cintos ou sem cintos, além de mais adereços e sapatos de várias cores com saltos de diversos tamanhos. Assim, para elas, a possibilidade de ‘errar’ parece maior do que a de acertar. Portanto, se elas acertam na visão de quem as vê, é como se elas provassem, mais do que os homens, que são de fato refinadas e inteligentes. O contrário também funciona!”, acredita Sant’ Anna.
Território de atenção e problemas
Isso não significa, contudo, que os homens estejam imunes às críticas em relação à aparência física. “Governantes gordos ou excessivamente magros, mal alinhados ou muito elegantes, já apareciam como alvo de comentários nas revistas satíricas brasileiras do começo do século 20, por exemplo, e mesmo antes”, conta Sant’ Anna. “Ou seja, o corpo do governo é há muito um ‘território’ de atenção e de problema, seja ele homem ou mulher”.Nesse sentido, a jornalista Luci Molina, co-autora do Guia de estilo para candidatos ao poder e para quem já chegou lá (editora Senac), lembra de um caso recente da política brasileira. “Quando Luiz Inácio Lula da Silva foi candidato a presidente nas eleições de 2002, ele não só mudou o discurso, como, principalmente, o visual. Das camisetas com slogans de luta trabalhista passou a usar terno e gravata. Os cabelos e a barba ganharam um trato especial, pois ele queria transmitir uma mensagem de estadista”.
Performance imagética
Isso porque se a preocupação dos políticos com a aparência não é recente, ao que parece vem se acirrando nos últimos tempos. “O século passado foi um momento importante nessa história, pois com a publicidade moderna, o cinema, a televisão e, mais recentemente com a internet, a imagem do corpo ganhou uma importância inusitada”, diz Sant’ Anna.“Os governos da atualidade têm muito mais oportunidades de contemplar a própria ‘performance imagética’ do que os governos do passado. Eles se veem com assiduidade na televisão, por exemplo, e desse modo conseguem ‘trabalhar’ a própria imagem com uma velocidade e uma informalidade muito diferentes dos rigores aos quais eram submetidos os antigos príncipes”, conclui.