Edward W. Said
Uma lembrança egípcio-alemã

Embora a carreira seguida por Edward Said não tenha sido a sonhada pela família para ele, sua crítica a um eurocentrismo onipresente e ao infame nexo entre poder e conhecimento nas relações “Norte-Sul” moldou as disciplinas em todas as áreas e além das humanidades.
Por Sonja Hegasy
“Edward Said amava a música, e eu amava seu amor pela música, bem como a musicalidade que caracterizava tudo o que ele fazia.”
Teju Cole em “A Quartet for Edward Said”
Capacidade de autocorreção
Um aspecto que me vem à mente era o interesse de Said pela autocorreção e – mais importante – sua capacidade de fazê-la. Desde os primórdios de minha graduação, me interessei por pensadoras e pensadores que revisam fundamentalmente seu próprio arcabouço teórico em algum momento mais avançado de suas vidas – uma atitude pouco comum. Edward Said discutia detalhes com quem resenhava sua obra, respondia a suas críticas e repensava suas teorias em troca contínua com as posições dessas pessoas. Isso fica bem evidente em seu ensaio “Traveling Theory” (“Teoria itinerante”), no qual Said pergunta o que acontece com uma teoria quando ela sai de seu contexto original. Said propõe-se a examinar os emaranhados transtemporais e translocais das teorias, argumentando que, ao viajar, essas teorias são muitas vezes domesticadas e despojadas de sua força original. Nunca me convenci de que uma teoria perde sua rebeldia quando sai de seu contexto original – muito pelo contrário. Onde muitos veem um processo de “comoditização” ou mesmo de “disneyficação”, com a globalização cultural ocidental se sobrepondo às ideias locais e unificando o mundo, me interesso mais pela pesquisa da parte criativa, porque as pessoas universalmente gostam de tomar as “coisas” e, ao mesmo tempo, moldá-las com sua própria marca original. Assim, foi gratificante para mim ler, muitos anos depois, como Said alterou sua abordagem da “Teoria itinerante” incorporando que ela pode ser enriquecida e fundida com vida e originalidade exatamente fora de seu contexto original.“Viciado em música”
Muitas pessoas não sabem que Said era de fato, desde 1986, o crítico musical do semanário estadunidense The Nation. Mais de 50 resenhas nos fazem vislumbrar uma das obsessões de Said, que era “viciado em música” (Mariam C. Said). Ele foi altamente influenciado pelo compositor, filósofo, musicólogo e fundador da Escola de Frankfurt, o alemão Theodor Adorno. Said usa a análise de Adorno para examinar o que compositores como Pierre Boulez e Arnold Schoenberg ou artistas como Glenn Gould pretendiam fazer ou a que eles reagiam. Ler essas críticas hoje leva a um mundo paralelo: podemos ver o jovem András Schiff através dos olhos de Said no Carnegie Hall, em 1989. Ao mesmo tempo, podemos ver e ouvir Sir András Schiff nos dias de hoje, no Pierre Boulez Saal, em Berlim. Esse é um fascinante jogo de perspectivas mutantes (um “Vexierspiel”, como gosto de chamar) que Said nos deixou. A lição na qual ele e Daniel Barenboim, como cofundadores da West-Eastern Divan Orchestra (Orquestra Divã Ocidental-Oriental), insistem é que a música nos ensina que uma voz não é nada sem a outra. O contraponto “torna a música mais bela”, é o que ouvimos. A música aceita dissidência e subversão, diz Barenboim. Mas será que isso pode realmente ser transposto da música para a esfera política?Fora do lugar
Edward Said viveu para testemunhar os preparativos para a invasão do Iraque e morreu em 24 de setembro de 2003, meio ano depois do início desta. Misinformation about Iraq (Desinformação sobre o Iraque) dá continuidade ao trabalho seminal de Said Covering Islam. How the Media and the Experts Determine How We See the Rest of the World (Cobrindo o Islã. Como a mídia e os especialistas determinam como vemos o resto do mundo). O arco de 1981 até a crescente islamofobia dos dias de hoje e a forma como a mídia ainda baseia suas reportagens em estereótipos conhecidos e naquilo que se espera é óbvia. Os pilotos de tanques de guerra que se dirigiam a Bagdá em 2003 ouviam playlists de combate para sustentar sua vontade de lutar, aliviar o próprio medo e subjugar a dor. Música do tipo de Touchdown, de T.I. e Eminem, ou Indestrutível, da banda Disturbed, era uma constante durante a mobilização.O livro de memórias de Said intitulado Out of Place (Fora do lugar – primeira edição de 1999), que ele começou a escrever após seu diagnóstico de leucemia, é, em si mesmo, um trabalho de “estilo tardio”, eu diria. Said adotou este termo de Adorno para examinar o que acontece com uma obra de arte no final da vida de quem a cria. Que qualidade estética esses trabalhos desenvolvem? “E se o trabalho artístico tardio não for harmonia e resolução, mas intransigência, dificuldade e contradição em aberto? E se a idade e a doença não produzirem a serenidade do ‘amadurecimento é tudo’?”, questionou Said em On Late Style: Music and Literature Against the Grain. Seu livro autobiográfico não é de fato mais intransigente do que outras de suas obras, mas uma pedra angular no projeto de preservar narrativas de primeira mão de deslocamento forçado, terra perdida e “um povo não existente”. Para Said, valeu a pena modificar o gênero em função desse objetivo. As memórias nos permitem um raro vislumbre de uma testemunha contemporânea da nakba (catástrofe) de 1948, sob a perspectiva de um jovem de 12 anos. Fora do lugar só cobre a infância e a adolescência de Said até o fim de sua educação nos Estados Unidos. É importante ter em mente esse aspecto geracional. Hoje, após a chamada Lei da Nakba de 2011, que dá ao Ministério israelense da Fazenda o direito de reter dinheiro público, caso uma entidade o use para (entre outros quesitos) “comemorar o Dia da Independência ou o dia do estabelecimento do Estado (de Israel – nota da autora) como um dia de luto”, as vozes capazes de descrever para as gerações futuras o evento da expulsão palestina são mais indispensáveis do que nunca.
Na casa de Said, a família guardava silêncio sobre a nakba, de modo que ele não ouviu quase nada sobre o que tinha acontecido na Palestina, exceto aquilo que lembrava por conta própria: refugiados palestinos aglomerando-se no Egito e sua tia Nabiha cuidando deles. Em várias passagens do livro, Said lembra que sua mãe escondia notícias das crianças, dizendo que elas não deveriam “quebrar a cabecinha com isso ou aquilo”. No entanto, esconder a expulsão do próprio povo certamente era muito mais do que ocultar uma “notícia”. Em seu livro de memórias, Edward Said relata, em mais de uma ocasião, o silêncio familiar:
“O assunto da Palestina raramente era abordado de forma aberta, embora comentários esporádicos de meu pai indicassem o colapso catastrófico de uma sociedade e o desaparecimento de um país. [...] Hoje me parece inexplicável que, tendo dominado nossas vidas ao longo de gerações, o problema da Palestina e de sua trágica perda, que afetava quase todas as pessoas que conhecíamos, mudando radicalmente nosso mundo, pudesse ser em tão grande medida sufocado por meus pais, omitido de suas discussões e mesmo de seus comentários”.
Edward Said: “Fora do lugar”, p. 177-178

Por fim, mas não com menos importância, me deparei, entre as resenhas escritas por Said, com uma que ressoou especial em mim: “Egyptian Rites” (Rituais egípcios), publicada no New York’s Village Voice (Said provavelmente estaria blogando hoje). Me perguntei o que ele queria dizer com “ritos”. Said realmente resenha, no artigo, a nova ala egípcia do Metropolitan Museum, que exibia o templo completo de Dendur, e uma série de filmes relacionados à abertura da exposição, em 1983. Em suas palavras:
“O Egito não é apenas mais um país estrangeiro; é especial. Todo mundo tem algum conhecimento sobre ele, seja através de fotografias de Abu Simbel, bustos de Nefertiti, cursos escolares sobre história antiga, ou imagens de Anwar Sadat na televisão. Personagens históricos - Cleópatra, Ramsés, Tutancâmon, entre muitos - foram convocados para servir à cultura de massa e continuam a existir e a funcionar como símbolos de paixão, conquista e riqueza, sobrepostos por uma distância exótica que continua atraente no fim do século 20”. (The World, the Text, and the Critic,1983, p. 43)
Gosto do “todo mundo” que ele escreveu no início da resenha. Fotos das pirâmides, sempre sob o mesmo ângulo para fora, Nefertiti ou Nofretete, como os alemães a chamam, em Berlim, e Tutancâmon (real ou como réplica) estão hoje entre os ícones globais mais conhecidos, que permanecem em uma pegajosa e já mortal teia de aranha de atribuições estrangeiras. Em 3 de outubro de 2020, Dia da Unidade Alemã, vândalos desconhecidos danificaram com um líquido oleoso artefatos egípcios, entre outros, no Museu Novo em Berlim. Não precisamos reavivar a memória de Edward Said – as circunstâncias atuais fazem isso por nós.
Agradeço a Teju Cole por me fornecer este roteiro, e a Roni Mann por seus comentários sobre uma versão anterior do texto.
– Sonja Hegasy, Berlim, dezembro de 2020