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O legado musical da Ásia Ocidental e do Norte e Nordeste da África 
“Da memória popular”

Exposição “Mirath:Music”, no Goethe-Institut Sudão | Foto (detalhe): Kita © Goethe-Institut Sudão
Exposição “Mirath:Music”, no Goethe-Institut Sudão | Foto (detalhe): Kita © Goethe-Institut Sudão | Exposição “Mirath:Music”, no Goethe-Institut Sudão | Foto (detalhe): Kita © Goethe-Institut Sudão

O que constitui um legado musical? Como ele pode se tornar audível? O projeto de exposição “Mirath: Music” convidou vários músicos da Ásia Ocidental e do Nordeste e Norte da África a explorar as tradições de suas regiões. A escritora libanesa Rayya Badran lança um olhar sobre a história musical da região e as trilhas produzidas, recheadas de lutas passadas.

Por Rayya Badran

Legado musical, ou legado em geral, é um terreno delicado para se navegar, que coloca questões cruciais, e talvez desconfortáveis, sobre apropriação cultural, política territorial ou geográfica, entre muitas outras. Para o projeto de exposição Mirath:Music – Mirath é a palavra árabe para herança, legado –, diversos músicos da Ásia Ocidental (o termo Oriente Médio não foi utilizado propositalmente, por ser uma denominação colonial criada pelas potências coloniais para descrever a região) e do Nordeste e Norte da África foram convidados a destrinchar a rica mas fragmentada história musical da região e a produzir faixas individuais que articulassem seu envolvimento pessoal com os sons, as tradições vocais e os instrumentos com os quais têm afinidades pessoais ou musicais. Questões sobre o que constitui um patrimônio musical são o verdadeiro campo dessa exposição, que torna audíveis as reflexões e trocas musicais dos instrumentistas durante o período de produção.

Uma vez que a Ásia Ocidental, o Nordeste e o Norte da África são regiões que suportaram décadas de colonialismo, guerras e crises econômicas perenes que fizeram com que milhões de pessoas emigrassem ou fugissem, seria impossível afirmar que as tradições musicais são fixas, ou que são monolíticas, ou que podemos mapear cada uma delas em qualquer momento. Tradições musicais originárias dessas regiões são versáteis e itinerantes, evocando expressões sônicas e vocais de lutas passadas e de formas de comunidade.

O negligenciamento do legado musical

Nos últimos anos, as regiões da Ásia Ocidental, do Nordeste e Norte da África testemunharam um interesse crescente de músicos e compositores nativos e da Diáspora, mas também de profissionais ocidentais da música na descoberta de práticas musicais ou músicos esquecidos. Porém, como os selos (ou instituições) ocidentais tendem a ter mais recursos para publicar seus achados musicais ou para iniciar projetos concentrados no patrimônio musical, por mais difícil que seja encontrá-los e adquiri-los, vemos um número menor de iniciativas prosperarem a partir do esforço de membros das comunidades originárias, exceto alguns projetos iniciados por nativos ou moradores. Esse paradigma atual não resulta necessariamente da falta de curiosidade ou apego à vasta história das práticas musicais, mas à falta de recursos e é consequência direta da negligência institucional na maioria dos países da região em relação às artes e à cultura.

De forma similar a outras práticas culturais na Ásia Ocidental, no Norte e Nordeste da África, a história material da música é muitas vezes incompleta devido à negligência e/ou destruição causada por décadas de conflitos políticos e ondas de migração nas regiões de origem. Os registros escritos e sonoros são, portanto, escassos e encontram-se predominantemente espalhados em instituições públicas ou privadas do Ocidente e mais escassamente na região de onde a música se origina – o que impõe mais desafios para que compositores, músicos e pesquisadores possam acessar parte dessa história. No entanto, o que distingue a música de outras práticas artísticas é sua natureza aural e o fato de não precisar de apoio material ou de uma partitura para ser transmitida, cantada ou tocada, razão pela qual ela resiste e viaja além das fronteiras e continua sendo uma ferramenta significativa de resistência entre milhões de pessoas, não apenas dentro dos limites da academia ou musicalidade. É claro que existem pesquisas ou arquivos, mas eles não são amplamente acessíveis ao público em geral e muitas vezes exigem viagens e permissão para acessá-los.

Que tipos de cohecimento musical existem?

Para a exposição Mirath:Music, compositores, músicos e artistas sonoros, incluindo Amel Zen, da Argélia, Ghassan Sahhab, do Líbano, Hajar Zahawy, do Curdistão-Iraque, Mohamed Adam, do Sudão, e Zaid Hilal, da Palestina, foram convidados a trabalhar com material sonoro relacionado à herança musical. Através de seu trabalho, eles esbarraram em questões tais como: Um arquivo é um verdadeiro reflexo de uma certa época? Se o arquivo é um recipiente de conhecimento formado institucionalmente, então até que ponto ele reflete a diversidade e a natureza da cultura em constante mudança na base? Que tipos de conhecimento musical existem além do arquivo institucional, e até que ponto eles são envolvidos de maneira diferente? Se os arquivos institucionais servem de repositórios oficiais de conhecimento, desenhando narrativas estatais sobre os destinos históricos das nações e dos povos, como começamos a mapear e entender o que está além deles? O que está retido na memória de cantores e músicos é duradouro, possivelmente ainda mais fora dos muros das instituições e arquivos porque eles transmitem o que os dados de arquivamento não conseguem. Eles comunicam um sentimento de pertencimento através da musicalidade e da música, transferem um amor pela terra que por si só já é um recipiente de conhecimento e sabedoria. Não importa quão longe alguém se encontre de sua terra e de seu povo, o fervor de uma canção, a reverberação de um som e a qualidade textural de um instrumento contêm uma auralidade que ultrapassa o inteligível. Talvez o que se aprende fora desses arquivos materiais evoque histórias, dores e anseios que nunca poderão ser audíveis em gravações de estúdio ou de campo.

Um dos propósitos fundamentais dos arquivos nacionais é a disponibilização de aspectos da história de uma nação, povos e culturas. Mas será que um arquivo é realmente completo para servir de ponto de partida? As gravações musicais encontradas em instituições europeias ou mesmo nas regiões de origem não carregam as cores das gravações etnográficas coloniais? Alguns dos músicos e compositores da exposição Mirath:Music usaram materiais sonoros de arquivos institucionais (a Fundação AMAR do Líbano, CMAM da Tunísia, o Phonogrammarchiv da Alemanha), ou optaram por incluir gravações de campo em suas obras acústicas produzidas por conta própria. Todos os músicos e compositores priorizaram diálogos com compositores falecidos ou tradições musicais, mas também olharam para dentro de suas próprias histórias e passados. Essas escolhas complicam ainda mais as questões colocadas acima sobre o que é conhecido, ou ainda não conhecido, em repositórios não tradicionais de conhecimento.

Em muitos aspectos, as composições musicais apresentadas na exposição Mirath:Music desnudam a tensão entre o que é transmitido oralmente – em sons que viajam pela memória coletiva e como formas de resistência – e aquilo que é encontrado nos limites dos arquivos musicais e de sons. O que é pronunciado e cantado talvez abra o caminho para desafiar as grandes narrativas históricas desenhadas pelos arquivos dos países supostamente monolíticos e monolinguísticos da região. 
  • Exposição “Mirath:Music”, Goethe-Institut Sudão Foto (detalhe): Kita © Goethe-Institut Sudão
    Exposição “Mirath:Music”, Goethe-Institut Sudão
  • Dançarinos na exposição “Mirath:Music”, Goethe-Institut Sudão Foto (detail): Kita © Goethe-Institut Sudão
    Dançarinos na exposição “Mirath:Music”, Goethe-Institut Sudão
  • Impressão da exposição “Mirath:Music”, Goethe-Institut Sudão Foto (Detalhe): Taher Otaibi © Goethe-Institut Sudão
    Impressão da exposição “Mirath:Music”, Goethe-Institut Sudão
  • Exposição “Mirath:Music”, Goethe-Institut Jordânia Foto (Detalhe): Taher Otaibi © Goethe-Institut Jordânia
    Exposição “Mirath:Music”, Goethe-Institut Jordânia
  • Impressão da exposição “Mirath:Music”, Goethe-Institut Jordânia Foto (Detalhe): Taher Otaibi © Goethe-Institut Jordânia
    Impressão da exposição “Mirath:Music”, Goethe-Institut Jordânia
  • Músicos na exposição “Mirath:Music”, Goethe-Institut Jordânia  Foto (detalhe): Taher Otaibi © Goethe-Institut Jordânia
    Músicos na exposição “Mirath:Music”, Goethe-Institut Jordânia 

Traduções musicais e vocais resistindo ao tempo

Como tal e apesar da atual falta de esforços orquestrados para documentar e coletar a extensão do patrimônio musical fora da iniciativa privada ou de instituições públicas tradicionais, muitas tradições musicais e contos populares cantados, alguns dos quais apresentados na exposição, como Daynane das regiões Amazighi na Argélia, continuam a ser transmitidos, mas também apropriados, por gerações, o que faz com que permaneçam presentes na memória coletiva de diferentes populações, incluindo jovens e idosos, em toda a região de origem. Isso é evidente na interpretação de Sasa (Hajouri) pelo músico e pesquisador sudanês Mohamed Adam, que ele descreve como “uma forma vocal popular em Darfur conhecida desde a Antiguidade”, evidenciando como as tradições musicais e vocais resistem às atribulações do tempo e continuam a evoluir de uma geração para outra. Enquanto gravações e partituras podem decair, as transmissões orais mantêm viva uma forma de congregação musical que é crucial para a sobrevivência cultural de seu povo. A letra dessa popular canção Hajouri é aprendida “a partir da memória popular”.

Esse tipo de transmissão talvez não seja específico do Sudão, mas o que pode ser específico é talvez a forma como essa transmissão se torna um meio de resistência política e cultural, e com que alcance ela é capaz de se manter na língua das pessoas quando o presente exige que seja cantada e tocada. Quando as músicas viajam, elas raramente desaparecem; permanecem alojadas na memória daqueles que as cantaram e continuam a cantá-las. Como no caso de Hayyed, do músico palestino Zaid Hilal, um lamento de amor que remonta à Revolta Árabe de 1936 e que Hilal elaborou para apresentar em sua própria voz, como se buscasse comunhão com os ancestrais de sua terra que enfrentaram os mesmos opressores que ele enfrenta hoje.

O que considero singular nessa exposição é a tentativa de iniciar conversas sobre o alcance do legado musical – uma abordagem que perturba a coesão percebida entre Estados-nações e as culturas que eles buscam esconder ou das quais tentam se apropriar – através do prisma das histórias pessoais dos músicos, o que está no cerne da forma como essas tradições são manifestadas e valorizadas. Em vez de emendar os sons que desejam incluir em uma composição original, os compositores se inseriram nos originais, como se tentassem perfurar esse passado musical opaco, por mais alegre ou doloroso que seja. O que está reservado ao futuro, e provavelmente servirá como herança no futuro, é o que está circulando agora nas frestas da tecnologia, das bocas dos jovens em revolta ou êxtase.

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