20.04.2020 | Yvonne Owuor
A pestilência, os populistas e nós
Caros amigos,
Vocês estão todos bem?
Jonas Lüscher, sua carta foi tremendamente tocante. Significativa em sua vulnerabilidade e poderosa em sua articulação, em sua perplexidade.
“(…) Há meses, contudo, tenho achado difícil escrever, sejam textos literários ou ensaios, e até conversar não anda fácil. Mas quem perde a capacidade de escrever ou falar (vocês, caros amigos, vão certamente entender isso muito bem), corre o risco de perder a capacidade de pensar também. Pois esse monólogo interior girando constantemente em torno de si próprio, que permanece e não encontra expressão em atos de fala dirigidos para fora nem uma articulação clara em linguagem escrita (…)”
A humanidade deve parar um pouco e se conceder um descanso rejuvenescedor que pode resultar no despertar de uma primavera de novas possibilidades.

Em tempos de incerteza, silêncio, me disseram uma vez, silenciar e escutar. Eu gostaria de imaginar que isso, em uma época tão estranha quanto esta pela qual a Terra está passando, possa ser um chamado à hibernação; para a humanidade parar um pouco e se conceder um descanso rejuvenescedor que pode resultar no despertar de uma primavera de novas possibilidades.
Sobre sua conclusão, ela lembra o que diz o Dr. Bernard Rieux de Albert Camus, narrador em “A Peste” (que se pode ler também como uma alegoria antifascista): “há nos homens mais coisas a admirar do que coisas a desprezar”.
E cabe reiterar isso com o que observou Camus: “Em um mundo cuja absurdidade parece tão impenetrável, nós simplesmente precisamos alcançar um grau mais elevado de compreensão [entre os humanos], uma maior sinceridade. Precisamos alcançar isso, ou pereceremos. Para conseguir isso, devem ser satisfeitas certas condições: [a humanidade] deve ser franca (a falsidade confunde as coisas) e livre (a comunicação com escravos é impossível). Por fim, as pessoas devem sentir uma certa justiça em torno delas”.
Camus me vem muito à mente. Para ser mais precisa, seu livro premonitório destes tempos estranhos, “A Peste”, está sempre na minha bolsa, como um talismã nestes dias de hoje. Quanto mais nos aprofundamos no nosso tema, mais perplexos ficamos diante de todas as contradições que este terrível período da nossa “peste” vem expondo. O diabo, metafórico e atual, está no difícil detalhe: de que enquanto escrevo isto as autoilusões e mitologias favoritas que mantemos sobre nós mesmos e sobre o lugar “do outro” se desgastaram e, em alguns casos, se desmancharam de uma forma muito pública. Até os raivosos sujeitos que provocaram nossa série de conversas estão conosco neste novo cenário de vida daliesco, repleto de uma gramática que imaginávamos estar restrita à antiga literatura: confinamento, quarentena, toque de recolher, estoque. Por causa do vírus, o espaço nas manchetes que era há muito ocupado pelos excessivos populistas e seus (des)feitos (incluindo o Brexit) desapareceu diante de narrativas mais urgentes da luta da humanidade.
Dados os elementos afins, o fascista interno que espreita em cada ser humano pode ser acionado, despertado, trazido à tona?
Por causa do vírus, o espaço nas manchetes que era há muito ocupado pelos excessivos populistas e seus (des)feitos (incluindo o Brexit) desapareceu diante de narrativas mais urgentes da luta da humanidade.
Olhando a partir da imaginada (nem tanto) periferia, com a segurança (não mais) da distância, parece estranho que subitamente estejamos compartilhando uma linguagem e uma gramática comuns ao mundo inteiro:
“Girando e girando a voltas crescentes
O falcão não escuta o falcoeiro.
Tudo se parte, o centro não sustenta”...
- W.B Yeats: A Segunda Vinda
Foi-nos dada a oportunidade de escrever globalmente uma história comum.
A escritora Anna Badkhen, brevemente em Nairóbi, me disse que a temporada do coronavírus oferece ao mundo a oportunidade incomum de uma história compartilhada através da qual seria possível reencontrarnos uns aos outros. Ao ver minha expressão confusa, pois ela tinha citado o 11 de setembro como um outro exemplo, ela acrescentou: “O que quero dizer é que, aonde quer que você vá no mundo agora, é ao coronavírus que as pessoas vão se referir, e é sobre ele que as pessoas vão falar e contar histórias”. Ela está certa. Mas, por ser um desafio global que tem impacto em cada indivíduo, talvez a pandemia se apresente ao mesmo tempo como microscópio e como telescópio, e crie um terreno uniforme onde a capacidade de resposta, a preparação, a resiliência e a humanidade estejam sob escrutínio imediato.
Ainda assim. Ainda assim.
Mesmo diante de uma luta existencial compartilhada, há um mundo que luta para restaurar o status quo, e que negligencia a fome de outro vocabulário que possa abranger nossa realidade mundial. Apesar da evidência de que o maior gesto humano vem do outro. Apesar da evidência de falhas sistemáticas na governança e nas estruturas organizadas sobre as quais a confiança humana havia sido depositada.
Esta pandemia vem como uma tempestade que reorienta, reconfigura e, mais significativamente, desnuda e expõe tudo isso. Ela colocou um ponto e vírgula no que é tido como “normal” no mundo.

O recuo dos Estados para as antigas fronteiras não é inesperado; o que é bastante surpreendente é o quão verdadeiramente ilusória tem sido a retórica e a representação da unidade sem fronteiras. Mas talvez isso não seja surpreendente, e sim: a volta de Deus como um mistério operacional na existência humana (pelo menos para ser colocado em julgamento de novo), e a pesquisa científica como a fundição do ferreiro diante da qual a humanidade espera um elixir de cura. Quando se foram todas as grandes poses, desnudadas dos adornos verbais como o imperador proverbial foi desnudado de sua roupa quimérica, a vulnerabilidade e as rachaduras na fachada da humanidade se expõem. No Quênia, o eterno ciclo eleitoral, os desfiles selvagens de políticos frívolos e amorais, sua automitologização sustentada pela mídia, suas caravanas cacofônicas de louvor e sua demagogia (felizmente) se evaporaram. Embora nossos tomadores de decisão (muitos vivem em torres de vidro escondidas por nuvens que obscurecem sua visão dos que vivem no chão) se dirijam ao país corretamente – devemos dar crédito onde ele é devido -, eles o fazem a partir da fantasia de terem ativado um ambiente capaz de sustentar as necessidades de longo prazo de alimento e água dos habitantes do Quênia; e de que a nossa economia não depende da continuidade da vida dos “wananchi”, os mais (extra)ordinários entre nós, que morreriam de rir da fantasia (sustentada por nossos ideólogos e por vários exércitos vocais do Twitter) de que podem “trabalhar de casa”.
Ainda assim.
Dados os elementos certos, o fascista interno que espreita em cada humano pode ser acionado, despertado, trazido à tona? É preciso muito pouco, não é?

Entendo.
Homo sum, humani nihil a me alienum puto
— Publius Terentius Afer
As entranhas das coisas vão além da ideologia. Depois desta tempestade, para os que conseguirem, é certo que a retórica, no mundo inteiro, e no Quênia também, será comparada com as experiências; as contradições internas que têm sido expostas serão confrontadas, premissas serão revisadas, se não inteiramente abandonadas, a contabilidade será solicitada e novas decisões serão tomadas - que provavelmente não sustentarão o status quo de “antes do vírus”. O mais revelador, e provavelmente preocupante, será a equação dos sistemas econômico (incluindo comércio) e de governança, da própria modernidade, do que não resistiu ao ataque, e de quais novos poderes o Estado perdeu ou adquiriu.
O mote da nossa conversa foi fornecido pelo espectro de um inferno humano causado pelo fascismo. No entanto, em retrospectiva, dadas as nuances e forças deste século 21, todo os seus contentamentos e descontentamentos, pode-se questionar se no cerne de tudo está a luta por uma gramática de e para a nossa época. Somos capazes de entender adequadamente o que está de fato acontecendo no mundo hoje, com um pensamento capaz de envolver as realidades da era digital, seu impacto na opinião e na formação cultural, o papel de manobras eleitorais com auxílio de operações psicológicas que se servem de análises de dados, algoritmos, engenharia social de massa e intervenções insidiosas do tipo SCL Group/Cambridge Analytica, que possa então estimular outras questões capazes de dar sentido ao que está acontecendo?
Uma vez terminado este drama, espero uma reorientação maciça, uma remodelação, uma reconfiguração do mundo. Uma repolarização é inevitável.

É o suficiente por enquanto.
Que possamos nos encontrar saudáveis, felizes e esperançosos de novo, do outro lado desta estranha noite que compartilhamos.
Mit herzlichen Grüßen,
Carinhosamente,
Yvonne Adhiambo Owuor
[em quarentena e confinada]