Hélio Fervenza
(Arte do desencontro)

Por Eduardo Veras
Aquilo que parece um continuum – o tempo, a vida ou, menos do que isso, uma narrativa, um discurso, um mero enunciado – é repentinamente interrompido. Não se trata ainda do fim, o inevitável, mas, antes, de uma suspensão, uma cessação passageira. O curso logo há de se recompor, a trilha seguirá adiante. Por ora, no entanto, as prioridades são outras: momento das explicações, das minúcias, dos exemplos; com sorte, algum devaneio, a chance de uma trégua, os desvios que se oferecem à ordem corrente dos fluxos.
Não é só isso que os parênteses sugerem. Caros tanto à linguagem escrita quanto às expressões matemáticas, eles se prestam a definir conjuntos e conjunturas. Há coisas que cabem (parte do todo) e coisas que sobram (o incontido). Àquelas que calhou o lado de dentro, confere-se não apenas uma existência particular, singular, mas uma condição de primazia. Atenção máxima!
Os parênteses funcionam, nesse caso, também como desenhos: curvas leves que se riscam em sentido vertical, as extremidades voltadas para dentro. Mais do que isso, porém, no interior do cubo branco eles assumem uma dimensão instalativa, quase site specific ou in situ. São respostas ao lugar. A própria sala em que se encontram passa ao estado de suspensão. O arranjo lembra certas partituras de John Cage: O’O”, a peça de 1962 que nem mesmo o intérprete tem certeza de estar executando, ou a mais célebre 4’33”, de 1959, que prescreve “silêncio” em três movimentos, ao longo de quatro minutos e trinta e três segundos. O espaço físico inteiro reconfigura-se diante dessa aparição, tão sutil como grandiosa. Não se tem mais certeza sobre o que está contido e o que não está, ou sobre onde começa e onde finda o intervalo. Por analogia, tudo é silêncio ou tudo fala?
Ocorre que, aparentemente, não há nada nos parênteses fixados na superfície do museu. As perguntas, pouco a pouco, fazem-se outras: se não há nada, tudo cabe? O público, diante desses sinais, está fora ou está dentro? E o museu, fora ou dentro? O que dizer do próprio trabalho? Ao fim e ao cabo, não se sabe mais a quem conferira prioridade que os traçados assinalam. Quem merece a trégua?
Tudo fica tão mais estranho ou complicado porque se percebe um segundo par de parênteses dentro do primeiro. Na relação entre as duas sequências de curvas, um jogo se inicia – um desencontro, como sugere o título do trabalho. Cores e escalas não têm correspondência direta, não coincidem. Existe ainda um pequeno degrau que desalinha o que seriam os parênteses internos, menores, acentuando o desencontro. No campo de visão, o parêntese que se abriu grande vai se fechar pequeno. O que se abriu pequeno se fechará grande. Algo se interpõe onde, à primeira vista, não havia nada. A cena remete àquele desenho/jogo citado por Wittgenstein, em que ora se vê um pato, ora um coelho, nunca as duas criaturas. Acreditaremos nas escalas ou nas cores? É possível a simultaneidade?
Talvez exista aí uma síntese ou uma metáfora da própria arte e suas possibilidades, ou, antes, das relações entre as imagens e seus observadores: a obra oscila entre ser uma coisa e outra. O olhar e os sentidos – as interpretações que o próprio olhar enseja – nunca se acomodam.
Hélio Fervenza
Artista plástico, doutor em Artes Plásticas pela Université de Paris I Panthéon-Sorbonne, professor do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do CNPq. Participou de diversas exposições, como Bienal de Veneza (Itália), Bienal de São Paulo (sala retrospectiva 1990-2012), Bienal de Yakutsk – BY14 (Rússia), Bienal do Mercosul (Porto Alegre), Museu da Gravura (Curitiba), Museu Victor Meirelles (Florianópolis), Bienal de Amsterdã (Holanda), Instituto Itaú Cultural (São Paulo), Fundación DANAE (Espanha), Musée des Beaux-Arts de Verviers (Bélgica), Grand Palais (França).
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