Reinventando SMETAK
Salvador

Entrevista Daniel Moreira

Daniel Moreira 2 © ©Daniel Moreira Daniel Moreira 2 ©Daniel Moreira
“Eu quis a simbiose das Plásticas de Smetak com as novas cores sonoras do Ensemble Modern”
 
A primeira vez que viu os instrumentos de Smetak no Centro Cultural Solar Ferrão, o compositor mineiro Daniel Moreira experimentou um estranhamento que ele gosta de comparar a uma curiosidade quase de criança. Diante das Plásticas Sonoras, Daniel sentiu vontade de tocar e brincar antes de se ater à simbologia de cada uma daquelas esculturas. De posse deste sentimento e depois de uma residência artística em Salvador, o compositor chegou à peça “Instrumentarium”, na qual mistura música e vídeo e tenta atribuir novas formas e funções às Plásticas smetakianas.
 
Você afirma que, em sua pesquisa, não foram as capacidades acústicas ou a filosofia hermética de Smetak que mais o marcaram, mas a curiosidade quase infantil instigada pelos desenhos de seus instrumentos. Como aconteceu essa descoberta?

Eu já havia trabalhado com o Ensemble no passado, em uma peça para a qual construí instrumentos musicais utilizando certos itens de emergência, como detectores de metal, alarmes, sirenes. Provavelmente, isso ficou na cabeça do grupo e, quando eles viram a oportunidade de fazer um projeto sobre Smetak, que é um construtor de instrumentos, um inventor, resolveram me chamar. Em 2015, eu fui para Salvador para ter esse primeiro contato com os instrumentos de Smetak e eu me lembro direitinho como foi. Lembro de a gente chegando no museu, eu descendo a escada, entrando ali e não conseguindo entender de cara o que eram aqueles objetos. Porque eles não aparentam ser instrumentos musicais, são esculturas que têm certos elementos de instrumentos musicais, como as cordas ou bocais, mas são algo que desperta uma curiosidade e eu me lembro dessa primeira curiosidade, de querer correr e tocar, de querer descobrir esses objetos e para mim isso foi muito marcante. Depois a gente passou muito tempo lá no museu, onde tivemos a chance de realmente tocar os instrumentos, entender como eles funcionavam, mas foi essa primeira surpresa, essa curiosidade, como eu disse, quase infantil que foi o mais forte. Foi isso o que eu quis resgatar e trazer para a minha peça.
 
“Instrumentarium” apresenta a composição em uma concepção acústica e também imagética, resultado de sua filmagem das Plásticas Sonoras no Solar Ferrão. Qual é a proposta?
Smetak criou os instrumentos dele e todo o seu processo artístico se baseava em transformação, em partir de algum elemento, algo que ele encontrava no estúdio ou em influências que tinha, para depois tentar sintetizar e criar algo novo, algo dele. Para mim, isso também é muito importante. Então, a proposta da minha peça foi, partindo dos instrumentos do Smetak, criar o meu próprio instrumento, um metainstrumento, que consiste nos instrumentos dele, mas também no meu input artístico. Eu me concentrei no aspecto que mais me interessava desses instrumentos de Smetak, que é a forma deles, essa forma misteriosa, as cores, a geometria, e na minha peça, através do vídeo, da multimídia, a gente vê esses instrumentos (ou parte deles) e eu os substituo com o meu som, com o som do Ensemble, com sons eletrônicos que eu mesmo criei. Smetak tem um instrumento chamado Três Sóis, que gira e produz certos ruídos, as cordas são sempre tocadas conforme esse instrumento gira, e eu filmei esse instrumento girando, em close up, e apenas utilizando esse movimento criei outros sons e outras funções para o Três Sóis. Ele muitas vezes gera o tempo do Ensemble, quão rápido ou quão devagar o Ensemble toca, de acordo com a velocidade da roda, por exemplo. Nada disso estava no instrumento original, mas só pôde ser criado a partir dele. A proposta é usar esses instrumentos de outra forma, tentar atribuir novas funções e novos sons que não estão presentes no instrumento e assim criar uma terceira coisa, que não é nem Daniel Moreira nem Smetak, mas uma junção dos dois.
 
O público vai se sentir provocado a imaginar como aqueles instrumentos soariam se fossem tocados?
Não. Não se trata de como esses instrumentos soariam, mas de como essas imagens que a gente está vendo no concerto soam. Você não precisa nem saber que se tratam de instrumentos, apesar de o título já dizer isso. Mas o que você vê são objetos, são formas, são movimentos que ganham som através dos músicos do Ensemble. Não se trata do som original dos instrumentos, mas dessa simbiose, desse metainstrumento que usa as formas e movimentos dos instrumentos de Smetak com as novas cores sonoras do Ensemble Modern. Na verdade, o foco da peça é exatamente em como esses instrumentos não soam. Agora, uma coisa interessante que ficou marcada para mim nessas visitas ao Ferrão é que eles permitiram que eu passasse as noites lá para fazer as filmagens e depois de duas semanas dentro do museu eu voltei para a Alemanha. Foi quando percebi que quase todos os vídeos que tinha feito, independentemente do horário, tinham uma trilha própria, um batuque ao fundo. Ouvi muitas vezes esses ritmos, que acabei gravando por acidente. Eu trouxe essa impressão digital sonora de Salvador comigo.
 
Por que é tão importante que as pessoas vejam Smetak além de escutá-lo?
Porque só escutar Smetak é tirar um aspecto essencial da obra dele. Ele não era só um músico, era um inventor, um criador, um escultor. Ele próprio dizia que suas composições eram esses instrumentos. Então, só ouvir Smetak é a mesma coisa de ir a um museu e ver uma pintura de Monet ou de Van Gogh em preto e branco. Outra coisa essencial é conhecer a pessoa do Smetak, um exemplo para qualquer artista. Ele era extremamente obstinado, tinha essa convicção de correr atrás do que acreditava, uma convicção quase inabalável, você vê pelos textos ou pela forma como ele tratava a música, e isso eu acho superinvejável e admirável para qualquer artista, independentemente de ser músico ou de qualquer outra área. 
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