Reinventando SMETAK
Salvador

Entrevista Julia Gerlach

Julia Gerlach ©Albrecht Hotz
“A importância de Smetak supera seus instrumentos e está em suas ideias”

Havia um plano, na Alemanha dos anos 1980, de levar as Plásticas Sonoras para aquele país, realizar uma grande exposição e imprimir um catálogo. O próprio Smetak esteve lá em 1982, residente do Programa Artistas-em-Berlim, do Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) – Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico –, e sabia disso. Quis o destino, porém, que essa ideia não saísse do papel, arquivada com a morte do inventor das esculturas sonoras logo depois que ele voltou para casa. Trinta e cinco anos se passaram até que a chefe de música do Programa Artistas-em-Berlim, Julia Gerlach, encontrou esses documentos. Foi quando ela decidiu repensar um jeito de levar Smetak para a Alemanha e trazer uma parte da Alemanha para homenagear a sua arte no Brasil. Assim surgiu “Reinventando Smetak”, projeto no qual três compositores brasileiros e uma australiana criaram peças exclusivas a partir de uma imersão no universo smetakiano. O concerto, executado pelo Ensemble Modern, já aconteceu na Alemanha e passará, neste julho de 2017, por Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Campos do Jordão. Para Gerlach, o público terá a chance de ver uma orquestra inspirada no artista que combinou experimentação e espiritualidade de uma maneira não familiar. 

Você teve a ideia deste projeto após ter encontrado manuscritos de Smetak nos arquivos do DAAD, quando ele esteve na Alemanha, nos anos 1980. Do que se tratam esses documentos?
É um material bem diversificado. Primeiro, eu achei muitas fotos desses instrumentos fabulosos. Eles me fascinaram imediatamente. Muitos eram duplicados, copiados para um pedido de leilão. Houve um forte interesse de diferentes instituições em Berlim, lideradas pelo programa “Artistas em Berlim”, do DAAD, de trazer esses instrumentos e tê-los no Musikinstrumentenmuseum, o museu musical dos instrumentos. O plano, entre o final de 1982/1983, era também realizar uma grande exibição e imprimir um catálogo. Foi um processo difícil e, ao final, o DAAD retirou o pedido por diferentes razões: 1. O museu queria ficar apenas com uma parte dessa coleção. 2. Smetak, que esteve procurando ansiosamente em Berlim por um lugar para seus instrumentos, por conta do fim de sua ligação com a UFBA, obviamente mudou de ideia. Ele continuou na universidade, que encontrou um novo espaço para os instrumentos. 3. Smetak já estava doente quando retornou e ele teve um acidente de moto. 4. Foi difícil encontrar dinheiro suficiente em Berlim, uma vez que os custos com transporte seriam muito altos. Smetak tinha sido residente do DAAD em 1982. Foi o diretor do programa “Artistas em Berlim” da época, Wieland Schmied, quem fez o convite. Um ano antes, Schmied tinha visitado Smetak em Salvador e recomendado o convite a esse artista extraordinário. Smetak veio por causa de um festival chamado “Horizonte”, focado na música da América do Sul. O DAAD, interessado nele, o chamou e organizou workshops e uma apresentação dentro da programação do “Horizonte”.
 
Você descobriu isso nestes documentos?
Sim. Na verdade, eu estava fascinada também por descobrir porque esse plano de trazer os instrumentos para Berlim não tinha dado certo e não há exatamente um documento explicando por que todas essas ambições de repente pararam. Talvez, o plano só tivesse sido adiado, mas Smetak morreu em 1984, assim como Helga Retzer, que cuidava da parte musical do DAAD, vítima de um trágico acidente de carro naquele mesmo ano. Entre esses documentos, estavam escritos como “Simbologia dos Instrumentos” e “Retorno ao Futuro”, uma descrição com desenhos do OVO, tudo em português. Houve apenas uma tradução mais curta, mas o tradutor comentou que o texto era muito esotérico e talvez essa tenha sido outra razão pela qual o projeto era difícil: Smetak, com suas criações muito especiais, vinha de um mundo diferente, que foi até mais do que hoje contraditório aos tempos racionais do pós-guerra na Europa/Alemanha. Ele combinou experimentação e espiritualidade de uma maneira não familiar. Então, resumindo, eu encontrei os seguintes materiais: diversas fotos dos instrumentos, escritos, fotos e documentos de atividades de Smetak em Berlim e cartas que ele trocou com parceiros de projetos. Tudo isso era muito fascinante.
 
Como essa investigação acabou se transformando no projeto com o Ensemble Modern?
Arthur Kampela era residente por um ano no programa “Artistas em Berlim” e eu perguntei a ele sobre Smetak. Ele ficou muito entusiasmado e me encorajou. Eu também conheci o artista e pesquisador Giuliano Obici, que, em 2012/2013, tinha estudado em Berlim e que também apoiou minha ideia. Obici, que fez parte de uma viagem a Salvador para pesquisa, está agora organizando uma pequena conferência no Rio de Janeiro. Em março deste ano, ele esteve em Berlim para o concerto e a conferência. Eu pedi a um musicólogo brasileiro que está morando em Berlim para fazer essa pesquisa. Ele entrou em contato com Bárbara Smetak, Marco Scarassatti e muitos outros e fez gravações e filmes. Acredito que, sem esses nativos da língua, essa pesquisa teria sido difícil, já que eu não falo português. Mas, passo a passo, o projeto evoluiu e eu mergulhei no mundo de Smetak no Brasil, junto com os compositores e artistas de música que, de alguma forma, estão conectados a ele. De repente eu estava encarando um mundo imenso que se tornava ainda maior e mais complexo cada vez que nós visitávamos Salvador e encontrávamos as pessoas. Eu senti isso quando eu visitei o arquivo na casa de Bárbara.
 
O que você achou de ter estado na casa em que Smetak viveu?
Foi onde eu descobri muitos escritos diferentes, pontuações e ideias estranhas, do Estudio OVO, por exemplo. E foi fascinante para mim que essa vanguarda tenha acontecido de forma paralela e mais ou menos independente da vanguarda nos Estados Unidos e na Europa, e que uma abordagem musical e uma evolução estética muito especiais tenham sido possíveis apenas em Salvador naquele momento. Quando eu apresentei as fotografias e filmagens dos instrumentos para a orquestra pela primeira vez, o fascínio foi imediato. Roland Diry, do Ensemble Modern, e eu viajamos junto com Arthur Kampela e Daniel Moreira para Salvador, em 2015. Ficou claro para nós que Smetak não poderia ser reduzido aos seus instrumentos. Consequentemente, a ideia nasceu: pedir aos compositores para mergulhar no seu mundo para buscar um interesse especial que eles iriam desenvolver em uma composição completa. Nós coletamos todo o material que pudemos encontrar e colocamos em um banco de dados que os compositores podiam acessar. Eu sou musicóloga e já tinha trabalhado com arquivos para publicações e também conectada com a produção artística e acho interessante e importante essa questão de arquivo e arte.
 
Como foi o processo de escolha dos compositores?
Nós escolhemos pensando na forte conexão que cada um deles tem com algum aspecto de Smetak. Seja a espiritualidade e a profundidade cultural de Liza Lim, a desconstrução de instrumentos de Arthur Kampela, a invenção de instrumentos de Daniel Moreira ou a teatral/performativa e direta qualidade na composição de Paulo Rios Filho. Foi uma decisão muito fundamental chamar compositores e não improvisadores. A ideia era criar algum tipo de recipiente cultural, alguma lembrança nessas composições que permaneceria de maneira diferente como a improvisação. E esses recipientes composicionais não só podiam continuar o modo de fazer a música coletiva de Smetak, como também podiam conter textos dele ou até mesmo sua voz. O arquivo do material transformado em novas obras. E essa era a ideia: começar uma transformação, uma nova invenção usando o material de Smetak, seus instrumentos, seu espírito. Para isso, o Goethe-Institut convidou os compositores para uma residência em Salvador, onde Kampela estudou intensamente as possibilidades de tocar os instrumentos, Daniel os filmou, Liza Lim visitou rituais de candomblé e Paulo, claro, que é de Salvador, esteve mais diretamente conectado com o mundo cultural da Bahia. Todas as composições são muito diretamente ligadas a experimentos e experiências pessoais em Salvador. Cada um deles escolheu um aspecto especial da personalidade diversa de Smetak.
 
Apesar da escolha pelos compositores neste projeto, Smetak costumava trabalhar muito com improvisação e o trabalho dele está imantado de um sentido espiritual para a música. Como o Ensemble Modern capturou esses aspectos para o concerto?
Três músicos do Ensemble Modern viajaram conosco para Salvador com o intuito de aprender mais sobre os instrumentos, encontrar pessoas que conheceram Smetak, respirar o ar da Bahia. Eles tocaram as Plásticas junto com compositores como Tuzé de Abreu, por exemplo. Esse encontro continuou em Berlim, onde nós organizamos novamente sessões de improvisação. E, claro, os músicos tiveram acesso ao material dos compositores.
 
O que significa a proposta de “reinventar” Smetak?
A ideia era trazer à superfície esse caráter muito inventivo de Smetak. A criatividade dele explodiu em Salvador. E ele não era mais tão jovem. Ele inventou uma microtonalidade especial, trabalhou nas ressonâncias, realizou experimentos eletrônicos, inventou o microfone, o OVO, construiu muitos instrumentos com diversas características, escreveu muitos livros e por aí vai. Então, nós pedimos aos compositores que inventassem algo cujo foco fosse algum aspecto de Smetak, para trazer à tona sua inventiva personalidade, que digeriu todas as experiências e ideias diferentes de uma época.
 
Qual a sua percepção do trabalho de Walter Smetak? Como você situaria a importância deste artista?
Eu sou realmente fascinada pelo seu trabalho e especialmente por suas visões e sua abordagem não convencional. Sem dúvida, seus instrumentos são o seu principal trabalho, eles são obras de arte para mostrar, para ver, e que incorporam suas ideias. Mas eu acho que sua importância vai além, e reside nas ideias elas mesmas. Você pode ver artistas mais jovens ligados à música que são sempre influenciados por um certo aspecto de suas ideias, sejam os instrumentos, a coletividade, a espiritualidade ou microtonalidade. Eu acho que ainda há muita pesquisa pela frente. Há tantos escritos e gravações que ainda não foram analisados e contextualizados. E seria ótimo se essa pesquisa também pudesse ser em inglês. Os textos poderiam ser traduzidos, embora eu saiba que, como essas traduções têm que ser comentadas, por conta da qualidade dos escritos de Smetak, essa é uma tarefa enorme! A percepção do projeto em Berlim foi muito forte eu acho que por causa do caráter inventivo do trabalho e de personalidade artística pouco clara de Stemak: isso é fascinante.
 
De que forma você acredita que o Brasil foi decisivo para ele produzir a arte que Smetak produziu?
Apesar da ditadura militar, há uma impressão de que, de alguma maneira, a Bahia conseguia experimentar uma liberdade criativa. Muitas iniciativas começaram na Bahia, as bienais, a fundação de grupos contemporâneos de composição, a Tropicália. Esse sentimento talvez tenha sobrevivido nas criações dos músicos. O Brasil também é um lugar cheio de natureza, com pessoas de espírito aberto, acho que emana arte em todas as suas diferentes formas.
 
Qual é o principal legado que ele deixou para a nova geração de músicos?
Faça o que você deseja, crie o seu próprio universo musical e divida isso com os outros.