Reinventando SMETAK
Salvador

Entrevista Tuzé de Abreu

Tuzé de Abreu ©Arquivo pessoal
“Foi na Bahia que ele se transformou nesse Smetak que a gente conhece”
 
Tuzé de Abreu não foi aluno formal de Smetak, mas não saía de sua oficina, onde gostava de investigar a potência das Plásticas Sonoras e admirar a força criativa daquela “figura esquisitíssima”, que oscilava entre a rispidez e uma doçura quase infantil. Tuzé fez parte do Grupo de Mendigos, conjunto que aprimorou o projeto smetakiano do violão de microtons e é o único artista presente na gravação dos dois CDs, “Smetak” (1974) e “Interregno” (1980). Bem-humoradas, suas lembranças fazem referência à arte, mas também à amizade construída por muitos anos e mantida na atenção à memória do mestre – Tuzé esteve entre os que trabalharam para levar as Plásticas Sonoras para o Solar Ferrão. O compositor e flautista baiano só não gosta muito quando atribuem a Smetak a função de influenciador da Tropicália. Em uma comparação com o disco “Sgt. Peppers”, dos Beatles, ele explica por quê.
 
Podemos dizer que a espiritualidade redefiniu Smetak?
Com certeza. Ele era um músico extraordinário, um violoncelista virtuose, que tocou praticamente todo o repertório de violoncelo, tinha um diploma reconhecido pelo Conservatório de Viena. Mas aí, entre 1945 e 1946, já no Brasil, ele conheceu José Henrique de Souza, que era baiano, de Salvador, mas não vivia mais aqui. Eu sei de várias histórias desse cara e o que eu vou contar agora é inédito, nunca disse antes. No tempo em que eu trabalhava com Smetak, chegava em casa comentando as coisas. E, na casa de minha infância, viviam essas duas senhoras que, ao me ouvir falar de José Henrique de Souza, identificaram: “Ah, esse aí é o doutor Bota a Mão”. Diziam que ele curava as pessoas dessa maneira. Esse sujeito, lá no sul, fez parte da Sociedade Teosófica Brasileira e depois criou uma dissidência chamada Sociedade Brasileira de Eubiose. Na eubiose, o Brasil passava a estar no centro. Era aqui que, em 2005, chegaria o Avatara Maitreya, uma espécie de Cristo. O Brasil era o destino do futuro do mundo, o país do futuro. Smetak dizia várias vezes, e Caetano adorava quando ele falava isso, com aquele jeitão brabo: “Eu acredito ferozmente no Brasil!”.
 
E quando ele entrou na eubiose, o que mudou?
Ele praticamente abandonou a música. Passou 11 anos estudando isso. Tinha um grupo em que muitas pessoas iam, e não eram só artistas, de artista tinha Smetak e o jovem Joãosinho Trinta, que na época era bailarino do Municipal. Smetak virou outra pessoa, mudou o modo de vestir, ficou cabeludo, se separou da primeira mulher, que era uma pianista famosa, alemã. Foi aqui na Bahia que ele se transformou nesse Smetak que a gente conhece. Ele era outro antes, um cara que só andava de paletó e gravata. Evidentemente, ele tinha alguma semente de coisa diferente dentro dele. Ou então não germinaria. Muita gente naquela época, eu também, tinha ouvido falar da eubiose. Mas aquilo não me tocou. Houve esse tempo em que ele trabalhava muito, era um vulcão. Tanto que uma vez disse: “Eu queria ter três vidas para fazer tudo o que tem dentro da minha cabeça”. Isso era a coisa que eu mais admirava em Smetak. Ele fez 32 livros, 150 instrumentos, mais de 300 poemas, não sei quantas esculturas, não sei quantas improvisações gravadas, três ou quatro peças de teatro, duas coreografias, mas tudo o que ele fazia ele dizia que não era música nem arte, era para dilatar a consciência das pessoas. Porque o objetivo da eubiose é aumentar a consciência, para a pessoa se tornar, entre aspas, um deus, com letra minúscula. Só mais tarde, depois que ele morreu, eu compreendi que qualquer coisa – isso que você está fazendo, isso que eu estou fazendo, varrer a rua, fazer uma cirurgia cerebral –, qualquer coisa que se faça honestamente, está contribuindo para dilatar consciências. Não precisa de eubiose, não precisa nem mesmo ser religioso. Mas, na época, eu não entendia. Ele acusava a mim e a Gereba [o cantor, compositor e violonista baiano Gereba Barreto, que foi aluno de Smetak]: “Vocês são ignorantes! Não querem estudar!”.
 
Você acha que Smetak diria hoje que acredita ferozmente no Brasil?
Poxa, boa pergunta. Em 2005, eu fui para a Alemanha, também para um projeto sobre Smetak e era uma coincidência, porque era o ano em que o Avatara Maytreia viria. Foi ótima a experiência. Aí, lá para 2008, 2009, Carlinhos Rodrigues, que já morreu, músico baiano, oboísta e que estava há muitos anos em Campinas (SP), veio para Salvador. Ele era eubiota fervoroso, desde garoto, tinha estudado com Smetak. Eu o levei na exposição do Solar Ferrão, ele chegou lá e começou a chorar e a me explicar coisas que eu não sabia. Dizia: “Esse instrumento significa isso, aqui é a passagem de Era, aqui é não sei o quê”. E eu aí, inocentemente, me lembrei e perguntei: “Carlinhos, e o negócio que ia acontecer em 2005, o que houve?”. Ele então respondeu: “Houve um pequeno atraso”. (Risos). Não tenho ideia de como Smetak se posicionaria em relação à política. Eu acho que ele continuaria acreditando, mas não posso garantir. Agora, eu tinha uma tremenda curiosidade de ver como seria com o computador. Ele chegou a se referir a isso ao falar do violão de microtons, que é uma coisa muito complexa musicalmente. Ele disse: “Consegui essas combinações de notas, mas eu sei que já tem computador que você pode programar todas as cordas e que vão dar todas as combinações de notas possíveis”. Ele deixou isso por escrito, se referindo àqueles computadores gigantescos. Eu adoraria ver Smetak com o computador.
 
Você presidiu a Associação de Amigos de Smetak por dez anos e, nesse período, os discos foram passados para CD, houve a primeira restauração dos instrumentos, o lançamento de uma edição de luxo de “Simbologia dos Instrumentos”. Apesar disso, Smetak ainda não tem um museu só dele. O que falta para isto se concretizar?
Eu fui fundador e, depois, presidente da Associação. Hoje, não sou nem membro e vou dizer por quê. Quando Gilberto Gil assumiu o Ministério da Cultura, Walter Lima [o cineasta carioca Walter Lima Júnior] quis fazer um edifício. Tem dois grandes projetos de Smetak, ambiciosíssimos. Um é o OVO, de 22 metros e o outro, a Universidade Livre. Waltinho quis fazer a universidade. Numa reunião na casa de Gil, ele disse que precisava de R$ 6 milhões. Eu vi Gilberto Gil, coitado, numa calça curta. Seis milhões naquele tempo, imagine. Mas aí surgiu a ideia de usar um dinheiro do Fundo de Cultura, eu fui fazer isso e tive que me afastar da Associação, para não ter conflito de interesse. Acabou que esse projeto também falhou e eu não voltei ainda para a Associação, mas vou falar com Bárbara. Ela sempre lutou para ter um lugar para os instrumentos. Em 2007, quando a gente foi despejado da UFBA, estávamos eu, Bárbara e um vizinho dela, que não tinha nada a ver com Smetak, mas foi ajudar. Só nós três, mais ninguém. Eu aluguei um caminhão baú e depois consegui com Márcio Meirelles, que era secretário de Cultura, levar para o fundo do Museu de Arte da Bahia, mas ficou tudo encaixotado. Depois, Daniel Rangel [na época, diretor da DIMUS, Diretoria de Museus do Estado da Bahia] teve uma participação excelente e conseguiu levar os instrumentos para o Solar Ferrão, que eu considero o melhor lugar que estes instrumentos já tiveram. Nem a Escola de Música nem a Biblioteca, nada foi melhor do que onde está agora. A verdade é que a UFBA nunca foi legal com Smetak, mas ele também nunca foi legal com a UFBA.
 
Em que sentido?
Ah, ele não falava com ninguém. Era brabo, mal-educado. Só quem gostava dele era Widmer [o compositor Ernest Widmer, que foi diretor da Escola de Música da UFBA], uns jovens malucos feito eu, que viviam atrás dele, e os compositores, que começaram a gostar por causa dos instrumentos. Um dia – e isso eu conto na minha dissertação de mestrado –, Widmer chegou na cantina da escola, estavam os compositores famosos todos reunidos, Lindenberg Cardoso, Jamary Oliveira, Fernando Cerqueira, Milton Gomes, Rinaldo Rossi, aquela turma, a elite dos compositores da Bahia. Aí, Widmer chegou com uma série de cartas e começou a distribuir os envelopes chamando o nome de cada um. Eles perguntaram: “O que é isso?”, e ele respondeu: “Vai ter um encontro de compositores contemporâneos em Brasília e vocês estão sendo convidados”. Nisso vem chegando Smetak, com aquelas calças folgadonas, um molho de chaves pendurado na cintura, que você ouvia o barulho a três metros de distância, o cheiro de cigarro e cola de instrumento, o cabelo desgrenhado, a camisa suja e toda velha, ele parecendo um urso. Como era viciado em café, volta e meia tinha que sair da oficina. Então, Widmer foi entregando o envelope a ele também, chamando pelo nome: “Smetak...”. Ele questionou: “O que é isso?”. Widmer começou a responder: “É um convite para participar…”. Mas ele nem deixou concluir: “Não, não, não tenho nada com isso, eu não”. Aí Jamary, todo didático, interveio: “Professor, o senhor é um compositor e é nosso contemporâneo”. Ele respondeu na hora: “Contemporâneo? Eu tenho 50 anos na frente!” (Risos). Mas ele não estava brincando, não, estava falando sério. Ele falava do jeito que pensava. Uma vez, ouvindo uma música, não sei se pediram a opinião ou ele quis dizer, a pessoa citou Debussy. Ele então disse: “Debussy compôs La mer e você compôs La merde!” (Risos).
 
Você foi da formação inicial do Grupo de Mendigos, junto com Gilberto Gil, Rogério Duarte, Gereba, Capenga e Fredera, mas afirmou que o melhor conjunto de microtons foi o que gravou o segundo disco Smetak. Por quê?
A gente trabalhou um verão e eles trabalharam dois anos. Foi por isso. Eu fiquei honradíssimo porque, já perto de gravar o segundo disco, Smetak me chamou para participar. Fui o único que esteve nos dois. O primeiro foi mais fácil de fazer, porque eram coisas que já estavam sendo feitas há anos e nem se pensava em disco. Só tem três ou quatro improvisações e uma das melhores é dele com Gereba. Essa não teve edição. A história desse disco é uma coisa maravilhosa de Caetano. Na época, as músicas de Carnaval dele faziam sucesso de público e de crítica. As gravadoras tinham os artistas da crítica, que eram Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Chico Buarque, e os artistas que vendiam, como Odair José. Caetano foi um dos primeiros a agradar os dois. A Philipis ligou pedindo uma música nova e ele, espertíssimamente, disse que não queria sair da Bahia, mas combinou que mandassem o equipamento, que ele faria e aproveitaria para gravar um disco de Smetak, que estava querendo. E assim foi feito. O disco foi gravado onde hoje é a Sala do Coro do Teatro Castro Alves, que na época era onde ficava a central de ar condicionado. Eu acabei atuando como interlocutor entre Smetak, Caetano e Gil. Ele fazia pedidos e a gente dizia que ia gravar tudo o que ele queria, mas que as improvisações seriam editadas. Ele então se preocupou: “Não! Eles vão querer botar as vozes deles!”. Acredita? Parecia criança pequena (risos). Mas acho que ele ficou bem satisfeito com o resultado.
 
O que seduziu os tropicalistas no trabalho de Smetak?
O Tropicalismo estava misturando Vicente Celestino com Beatles, com Roberto Carlos, Paulinho da Viola, Nara Leão, com música concreta, poesia concreta. Então, uma coisa daquela, nova e sólida, não podia deixar de entrar. Agora, eu fico um pouco chateado quando ouço o pessoal dizer que Smetak influenciou o Tropicalismo. Smetak foi um dos elementos, Gil e Caetano fizeram músicas se referindo a ele, Caetano cantou “Smetak & Musak” e Gil, “Smetak tak tak”. Ou ainda outra de Gil, que dizia assim: “Vamos passear no astral com o duplo etérico furado”. Isso era uma ideia de Smetak, que se a gente tomasse drogas, ia furar o duplo etérico e você podia se perder no cosmos e não voltar nunca mais. Mas há muito exagero em dizer que Smetak é o influenciador da Tropicália. Foi um movimento influenciado por tanta coisa. Se for assim, Vicente Celestino também foi. E Roberto Carlos. A Tropicália é um mosaico gigantesco, é que nem aquela capa do disco “Sgt. Peppers”, dos Beatles. Smetak é uma daquelas carinhas que está ali naquela capa. Se tirar a carinha dele e colocar outra, tanto faz. Agora, foi bom que ele existisse para a Tropicália. Foi ótimo.
 
É verdade que Gil e Caetano queriam fazer os Doces Bárbaros centrado na figura dele e ele não quis?
É verdade. Centrado, não, mas o mote seria Smetak. E ele, claro, começou a botar muita dificuldade. Me parece, eu não sei, porque não participei das reuniões com eles quatro, que Bethânia foi a primeira que ficou zangada. Ela teria dito: “Ah, esse cara está botando muita dificuldade, vamos deixar para lá”. Mas não tenho certeza. Isso foi ideia de Caetano e Gil, a gente não sabe como funcionaria. Ele seria um mote. Porque, de fato, Smetak era um doce bárbaro, sempre foi. Antes mesmo de todos eles. Era um cara que virava monstro e, de repente, se transformava em uma criancinha, num segundo.
 
Caetano disse, certa vez, que Smetak era uma mente altamente sofisticada em uma criança.
Era isso mesmo. Por exemplo, no dia em que ficou chamando eu e Gereba de ignorantes porque a gente não sabia nada de eubiose, ele gritava: “Vocês só fazem isso para impressionar as meninas, só querem namorar!”. Era um personagem estranhíssimo. Nesse dia, ele estava vermelho, gritando que a gente não sabia nada. Eu aí falei: “Ah, é? Então eu vou-me embora”. Na mesma hora ele disse: “Não, fique. Porque você toca bonitinho” (Risos). Ele era bravo, mas não passava daquilo. Lembro de muitas reuniões do violão de microtons, ele brigava muito com Rogério Duarte. Certa vez, gritou: “Saia da minha casa!”. E Rogério deu testa, disse: “Eu não vou sair!”, bravo também. A reação de Smetak foi: “Hum”. E pronto! Era como se essa briga nunca nem tivesse existido (Risos).
 
O que você, que já assistiu ao concerto, achou do Ensemble Modern tocando peças inspiradas em Smetak?
Achei muito bacana. E bom que é uma inspiração, porque o próprio Smetak nunca quis fazer uma escola para todo mundo seguir. Gostei muito do trabalho de Daniel Moreira. Gostei de todos, mas ele foi o meu preferido. Meu pavilhão dos eus se identificou mais com a peça dele (Risos). Achei que o fluir dela era mais como o fluir das coisas de Smetak, das coisas nossas, o tipo de fluxo. Tem muito isso com música contemporânea, os gestos que essa peça apresentou me foram mais familiares. Não quer dizer que ela era melhor. Mas foi a que me tocou mais.