Reinventando SMETAK
Salvador

Entrevista Uibitu Smetak

Uibitu ©Dôra Araújo
“Fazer uma teosofia na música é a descoberta de Smetak”
 
O filho caçula de Smetak é o único músico, mas demorou até que o público entendesse que Uibitu precisava trilhar o seu próprio caminho. Do pai, ele herdou o nome – uma brincadeira com o “to be or not to be” shakespeariano – e o primeiro violino. Nunca teve aulas com Smetak, mas, desde menino, recebeu cartas com algumas pistas e, de tanto olhar, ler e praticar, foi aprendendo a ter familiaridade com o mistério. Violinista da Orquestra Sinfônica da Bahia, Uibitu tem uma visão particular e muito afetuosa do inventor das Plásticas Sonoras.
 
Você afirmou certa vez que só depois da morte de seu pai você se deu conta de que ele tinha a música como uma forma de elevação espiritual. Como chegou a esse entendimento?
Quando meu pai faleceu, eu tinha 13 anos, era muito menino ainda, não tinha noção do trabalho completo. Mas eu tinha acesso aos livros dele. Desde criança eu via o “Bhagavad Gita”, via aquelas ilustrações, Hare Krishna, aqueles deuses, e, a partir daí, eu comecei a me interessar. Depois, junto com Bárbara, minha irmã, que sempre tomou a frente de tudo, cuidou dos instrumentos, fez manifestações para achar um lugar para eles – e a gente sempre estava sendo despejado dos lugares –, eu fui aprendendo. Não sei exatamente o ponto onde foi, mas a gente vai ficando mais maduro e vai ligando as coisas. Eu me interessei pela teosofia, comecei a ler os livros dele, que para mim eram muito difíceis, aos 13 anos eu não entendia nada. Depois, o discernimento vai baixando e você vai entendendo, aí fiz minhas relações do que ele propunha teosoficamente na música, que é um caminho dele. Esse caminho de fazer uma teosofia na música é a descoberta dele, acho que o que ele trouxe de novo foi isso: transferir toda a teosofia que aprendeu para os sons.
 
Como músico e como alguém que conheceu a intimidade do artista, que visão você construiu desse trabalho?
Eu cheguei à conclusão de que ele transpôs para a música toda a teosofia que aprendeu, então os instrumentos são parte. Tem três pilares: a construção dos instrumentos, a teoria que ele deixou em mais de 20 livros – e só dois foram editados, “O retorno ao futuro” e “Simbologia dos instrumentos” – e as práticas que ele fazia. Hoje eu me pergunto como seria reativar esse trabalho espiritual ele não estando mais vivo. Porque, quando ele estava vivo, ele coordenava tudo. Cada improvisação tinha um sentido, ele buscava realmente alguma coisa em cada reunião daquelas com os alunos. E a instrução que ele deixou escrita, ele próprio dava. Eu fiquei sabendo depois, por alguns discípulos, que ele fazia a prática, a aula de improvisação, e às vezes chamava alguém e ficavam conversando. Mas tudo fazia parte de um grande plano dele, eu acho, de unir essas três coisas. O instrumento seria o que ele chamava de “instruir mentes”. No “Simbologia”, também descobri um conceito de instrumento como templo. Primeiro surgiu o templo e o instrumento é o templo portátil, que chegou depois à casa dos homens. Um instrumento seria também a divindade operando em uma pessoa. E ele fez tudo isso, um trabalho com o som, apesar de ter música também. O primeiro CD tem linhas melódicas e, às vezes, só tem som. Mas o fato de ter música mostra que ele nunca se desvinculou. As pessoas dizem: “Ah, Smetak rompeu com a música clássica”. Ele nunca rompeu.
 
Há muita gente que ainda hoje acredita que sim.
Eu tenho certeza que Smetak não negou suas origens. No primeiro disco, o que Caetano produziu [Smetak, Phonogram, 1974], tem uma faixa que chama “Mantram”, que tem uma sarabanda perfeita de Bach [o compositor alemão Johann Sebastian Bach, que viveu entre 1685 e 1750 e a quem Smetak se referia como “Joseba”]. Começa com improvisação, tem os sinos, depois ele joga essa sarabanda, que parece até o minueto da primeira suíte para violoncelo. Ele cita. E você não cita uma coisa que você não gosta, o que você não gosta, você esquece. Smetak nunca falou, em momento algum, que tivesse rompido. No “Simbologia dos instrumentos” tem tudo, é um pequeno mapa dele, e ali ele está dizendo como o violino é um instrumento perfeito. Ele adorava Bach e Mozart também. O novo veio a partir disso. É interessante pensar como esses músicos que ele admirava, também na época deles, estavam fazendo algo novo. Eu soube recentemente, através do professor de piano de minha filha, Amanda, que há documentos da Alemanha onde está escrito que Bach foi contratado “por falta de alguém melhor”. Quer dizer, o que a gente hoje acha genial era subestimado. Telemann [o alemão Georg Philipp Telemann, que viveu entre 1681 e 1767] era o grande compositor da época. Depois que Telemann faleceu, veio Bach, mas ele ficou escondido por séculos. Mendelssohn [o compositor, pianista e maestro alemão Felix Mendelssohn, que viveu entre 1809-1847], séculos depois, descobriu Bach. A gente teve a sorte, mas quando ele estava vivo, ninguém sabia quem era. Até falam que tinha partitura de Bach enrolando peixe naquela época. O novo assusta, né? Smetak me deu um violino, ele nunca me forçou a fazer o trabalho dele, a pesquisar, nunca. E eu acho isso muito legal também, de você não ter que estar na obrigação, como muitas pessoas cobram: “Ah, você é o filho de Smetak, o único músico, por que você não continua o trabalho dele?”.
 
Você é muito cobrado por isso?
Hoje até menos. Mas ele nunca me cobrou. Ele me deu o violino, eu sou violinista como ele queria e sou feliz assim. Talvez chegue o momento que eu pegue essa missão. Mas, por enquanto, estou com outra, fazendo a minha missão. No começo, quando eu era mais jovem, havia muita cobrança. Na época em que eu estava abandonando as coisas, largando as faculdades [Uibitu abandonou os cursos de Música e Letras e depois concluiu Música]. Eu fiquei muito revoltado quando minha mãe morreu, eu era muito apegado a ela. Aquilo acabou meu mundo, perdi a esperança. Eu tinha 19 anos, já tinha perdido meu pai. Os irmãos sempre ajudaram, mas não é a mesma coisa, eu tinha ficado órfão. O que é uma pessoa aos 19 anos? O que se pode cobrar? Hoje eu tenho uma filha de 15 e vejo que ter 15, 20 anos, você não é nada ainda. Então, como podiam me julgar, dizer “Esse filho de Smetak não quer nada, não deu pra nada”, como muita gente dizia? Quando entrei na orquestra eu era rebelde, tinha 18 anos, conversava bastante. E minha mãe morreu um ano depois. Passaram dez anos e um amigo me contou que, conversando com um conhecido, falaram de mim e ele teria dito: “Uibitu, aquele que não toca nada?”. Eu já era outra pessoa, meu amigo me defendeu, mas existia esse pensamento. Hoje também eu procuro ver como as pessoas mudam e procuro não julgar, “Fulaninho é assim”. Às vezes, é um momento da vida, todo mundo tem o direito de errar, recomeçar. Não que eu queira me defender, não me arrependo de nada. Mas quando a gente é jovem, não tem muito discernimento.
 
A ideia era que você continuasse o trabalho dele?
Também. Eu tinha medo de me envolver. Primeiro, porque eu era criança. Eu ia falar o quê? “Por que você não continua a obra de seu pai?”. Eu tinha 13 anos! Depois, eu tinha 20 anos. Agora, eu tenho quase 50, tenho 46 anos. E acho que tenho uma bagagem para poder fazer alguma coisa. Umberto Eco faz uma crítica com a qual eu concordo, a de que hoje você é doutor aos 30 anos, quando na verdade alguém começa a ser doutor aos 50. Claro, há jovens brilhantes com trabalhos sólidos e pessoas maduras com trabalhos ruins, é difícil julgar. Mas acho que, quanto mais maduro você está, melhor vai ser o conteúdo do seu trabalho, se você aprimorou isso na sua vida.
 
Seu pai lhe deu seu primeiro violino. Ele ensinou a tocar?
Ele conversava pouco com a gente, mas às vezes, num aniversário, ele dava uma cartinha com um desenho. Quando recebi meu primeiro violino foi assim: ele desenhou duas cabeças, como o símbolo do infinito, remetendo ao violino, me deu uma nota de dez cruzeiros – e a cédula também tinha a imagem de duas cabeças – e colocou umas instruções numa carta. Ele dava instruções assim. Periodicamente, tinha um mistério, mas ele não era de explicar. Dava as pistas para depois você entender. Todos recebemos cartas, era como se ele desse aquela pista para você descobrir no momento ou ir guardando para um dia, no futuro, entender o que ele queria dizer. Ele nunca me ensinou a tocar. Às vezes, afinava o violino ou quando eu estava estudando falava com minha mãe, dizia: “Chame que eu vou dar um cascudo nele, que está desafinado!”. Quando ele separou de minha mãe, continuou almoçando lá em casa todos os dias. Aí ele sempre via a gente. Às vezes, eu esperava ele ir embora para estudar sem que ele ficasse me corrigindo. Mas na época ele já tinha contratado uma professora e ela contava se eu estava indo bem ou não.
 
Smetak acreditava que podia educar multidões a ouvir o silêncio. Você foi um aluno bem-sucedido nessa lição?
Acho que todo músico de verdade tem que saber ouvir o silêncio. A pausa é música. A gente aprende e é verdade. Na pausa se esconde muita coisa, o silêncio é importante. Até mesmo para quem é músico, às vezes você chega de um ensaio supercansado, tocou mil notas, não quer ouvir nada. Quer chegar em casa e ouvir o silêncio. Todo músico tem que ter essa noção, da importância do vazio. É o vazio que te preenche de novo.
 
Para Smetak, estudar os instrumentos mais primitivos da humanidade também era uma forma de chegar adiante. O que você pensa sobre isso?
A base de tudo está na ancestralidade, as mudanças são poucas no decorrer do tempo. Você tem o violino, que foi um rebab árabe e evoluiu para o violino elétrico, mas a base continua aquela. Então, você nunca pode esquecer o passado. No instrumento ancestral, já tem a informação do novo instrumento, tudo é uma releitura. Talvez não tenha muita diferença entre o instrumento do futuro e aquele, é só uma evolução. E a evolução pode ser também uma volta ao estágio primordial. Eu acho que é um ciclo. Ele fala muito disso em “Simbologia”, ele parte do antigo e cria instrumentos novos, mas esses novos estão cheios de referências. Os choris trabalham muito com o ocidente e o oriente. Tem um chori que parece um instrumento indiano, mas tem um braço de violoncelo, tem um espelho de violoncelo ou uma cabaça. Na Índia tem cabaça também, como caixa de ressonância. Você cria o futuro a partir do passado, não pode romper. É o que se vê hoje: muitos músicos ultramodernos têm a referência lá em Bach. Você nunca pode esquecer de onde vem, a origem.