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Teatro político
Inquietude e incomodidade – o teatro político como campo de forças agonístico

Gintersdorfer/Klaßen „Der Botschafter“
Gintersdorfer/Klaßen „Der Botschafter“ | Foto: Knut Klaßen

Quanto mais os tempos que vivemos parecem fora de controlo, tanto mais o teatro, que no passado funcionava muitas vezes como a arte política por excelência, parece ter dificuldade em encontrar o seu lugar.

De Florian Malzacher

De duas, uma: ou o teatro duvida da sua própria relevância social ou delega-a sobretudo na ação política concreta, mas não forçosamente na intervenção artística. Ou então socorre-se de meios estéticos do passado, que se limitam no essencial à apresentação frontal e crítica dos males, mas não encontra uma forma adequada, nomeadamente política, de o fazer.

E, na realidade, após um período forte de teatro sobretudo narrativo, nas décadas de 70 e 80, seguido de formas pós-dramáticas que colocavam o próprio teatro e a sua estética no centro das atenções, surge de novo uma grande vontade de fazer teatro político. Não um teatro que estabelece pontes em relação aos temas sociais mais importantes, mas que se coloca ele próprio na esfera pública. Já não existe para tal um Pequeno Organon para o Teatro (como o de Bertolt Brecht, de 1948) que possa servir de cartilha. Encontramo-nos num período de experimentação, de procura, tanto da parte dos artistas como do público. Mas existem abordagens estéticas suficientes a sublinhar de novo o potencial político do teatro.

Participação

Participação é uma palavra que se tornou quase banal no nosso capitalismo inclusivo. É um tranquilizante que tem por efeito secundário delegar nos cidadãos, que não têm influência no desfecho dos acontecimentos, a responsabilidade por aquilo que sucede. O mesmo acontece com muito do teatro chamado colaborativo, que imita muitas vezes apenas uma participação-placebo e obriga o público a envolver-se num cenário em que todas as possibilidades de escolha estão definidas à partida: a passividade mascarada de atividade.
 
Gintersdorfer/ Klaßen „LOGOBI 05“ (Youtube)

Mas por muito problemático que o conceito se tenha tornado, ainda assim precisamos muito de um teatro da partilha que se situe no meio deste dilema: não se trata de evitar uma participação fictícia, mas sim da apropriação, de novo, da ideia de uma verdadeira partilha. Uma partilha que possa desenvolver o seu potencial radical no âmbito da política e da arte.

A verdadeira participação significa delegar a responsabilidade e o poder. As peças didáticas de Bertolt Brecht eram concebidas para serem representadas pelo público – a classe operária. O dramaturgo brasileiro Augusto Boal seguiu esta ideia não só no seu Teatro do Oprimido, mas delegava também a responsabilidade pelo desenvolvimento da peça aos «espect-atores», portanto aos espetadores, que se tornavam atores no decurso da representação..

No seu projeto de longa data, Building Conversation, a dramaturga holandesa Lotte van den Berg pretende reduzir ainda mais o teatro ao seu núcleo essencial. Para ela, o teatro é sobretudo um espaço da comunicação, do encontro, um contrato que respeita regras frequentemente muito diferentes. Building Conversation inspira-se em técnicas de conversação oriundas de todo o mundo. Não há atores nem público, apenas o convite à participação – numa conversa sem palavras, por exemplo, inspirada nas assembleias do povo esquimó dos inuítes – ou numa alternância de reflexão, retiro e diálogo, à semelhança da prática dos jesuítas. Outras conversas sucedem-se sem moderação, tema ou objetivo – um procedimento que o físico quântico David Bohm desenvolveu para mostrar padrões do pensamento coletivo.

Pluralismo agonístico

Building Conversation é diretamente influenciado pelo conceito do «pluralismo agonístico» da politóloga belga Chantal Mouffe, que se presta a descrever as possibilidades específicas do teatro político da atualidade. Enquanto muitos filósofos – de Karl Marx a Jürgen Habermas – acreditam na possibilidade de um consenso social geral, Mouffe adverte para o facto de que o pretenso consenso oprime opiniões diferentes, o que conduz, no fim de contas, a um antagonismo hostil. Se quisermos «que as pessoas sejam livres temos de permitir sempre a possibilidade de surgimento do conflito e dispor de uma arena em que as diferenças possam ter um espaço de confronto», nas palavras de Chantal Mouffe.

Na minha perspetiva é aqui que reside o potencial específico do teatro: num tempo em que, por um lado, a máxima «quem não é a nosso favor é contra nós» conhece um renascimento espantoso e, por outro, a lógica do consenso anestesia toda a discussão democrática, o teatro deve ser a arena em que devemos poder exprimir, enquanto contendores, as nossas diferenças sem ter de chegar a um consenso. Não é por acaso que a prática agonística – ou seja, a expressão democrática de posições contrárias sem cair numa hostilidade absoluta – extraiu o seu nome do teatro, do agon, a disputa de argumentos na tragédia grega.
 

Milo Rau „Moskauer Prozesse“, Trailer (Youtube)

Apesar de algumas produções do dramaturgo suíço Milo Rau se deverem mais a uma estética de um realismo empático bem concebido, as suas encenações de processos políticos judiciais podem ser interpretadas justamente na linha do teatro agonístico: na peça Moskauer Prozesse, de 2013, três processos movidos contra artistas e curadores russos são de novo levados perante o juiz – desta vez no campo da arte. Curadores, artistas e críticos batem-se pela liberdade artística de um lado, e, do outro, estão moderadores televisivos conservadores, ativistas ortodoxos e padres. Durante três dias, o Centro Sakarov, em Moscovo, foi palco de um confronto agonístico, em que opiniões radicalmente diferentes se esgrimiam de uma forma que seria impoensável no exterior.

Sempre que o teatro se torna assim um espaço aberto, é possível mostrar aquilo que a participação no teatro pode significar: uma partilha que, como escreve a historiadora de arte Claire Bishop, produz mais um «sentimento de inquietude e incomodidade do que de pertença». Pois «o pressuposto essencial de toda a ação política» é fazer com que todos os participantes sejam tratados como «sujeitos com pensamento independente».

Representação

Todas as pessoas que vão ao teatro – seja na qualidade de atores, performers, «espect-atores» ou espetadores – fazem sempre parte de uma comunidade maior, marcada pela cor da pele, género, classe social, corpo, profissão... As questões que perseguem atualmente todas as democracias – quem é representado por quem, como, de que maneira e com que direito? – encontram o seu reflexo no teatro: pode um ator burguês representar um refugiado? Pode o ocidente representar o sul globalizado? Pode um homem representar uma mulher? Será a representação de clichés – de género, raça, etc. – algo que desmascara ou apenas a repetição de uma humilhação degradante??

As raízes das discussões mais recentes, tais como o debate em torno da black face, são mais profundas do que o mero questionamento acerca do direito e da aptidão de atores brancos para representar personagens negras. Os desafios são complexos, tanto do ponto de vista político como artístico. Eles perdurarão para lá dos debates de curto prazo acerca do politicamente correto e irão ocupar o teatro por muito tempo.

Formas teatrais pós-dramáticas, como as dos Gob Squad ou She She Pop, reagiram, na última década do século XX e na primeira do século XXI, focando-se na sua própria vida, à pretensão de querer representar sem mais os problemas do mundo no teatro. Outros, como o grupo Rimini Protokoll, levaram ao palco representantes de outros universos vivenciais, ao vivo, desempenhando os seus próprios papéis. Estas abordagens baralharam efetivamente as cartas de novo, mas num mundo em acelerada mudança os seus limites são, contudo, claros: correm o risco de encarar o próprio espaço como se fosse o mundo; por outro lado, o respeito «pelo outro» pode resvalar para o exotismo.

Dramaturgos como Monika Gintersdorfer andam, por isso, sempre à procura de novas formas de partilhar de facto o palco com os seus colaboradores – neste caso, africanos – redefinindo constantemente o seu papel de encenadora. O conceito de chefferie – um modelo político de reunião de chefes, com os mesmos direitos, dos tempos pré-coloniais, e que continua a existir até hoje, não só deu o título a uma das suas produções como serve também de metáfora para o trabalho em conjunto.

Theater Hora „Disabled Theater“ Theater Hora „Disabled Theater“ | © Theater Hora, Foto: Michael Bause Em contrapartida, o teatro suíço Hora – uma das companhias mais conhecidas que trabalha com atores com deficiências cognitivas – continua a reservar aos seus encenadores a clássica posição exterior. No entanto, um segundo olhar revela que a resistência dos atores e as suas personalidades fortes, muitas vezes imprevisíveis, subvertem permanentemente este modelo de trabalho. O coreógrafo Jérôme Bel, encenador francês convidado, tornou muito clara esta posição no trabalho Disabled Theater (2012): por um lado, as suas indicações cénicas rígidas eram bem vincadas durante o espetáculo, sublinhando a hierarquia. Por outro lado, os atores cumpriam as suas tarefas como eles próprios queriam, e às vezes não as cumpriam de todo.

No fim de contas, o teatro é como a sociedade: se quisermos pluralismo de verdade, é necessário que aqueles que estão sub-representados, ou são sempre representados por outros, assumam um papel de maior relevo, no palco, mas também atrás e à frente dele. Só assim o teatro será efetivamente um espaço em que as práticas sociais possam ser experimentadas ou criadas em miniatura. Neste processo, o facto de o teatro não só resistir às contradições entre arte e política, mas de viver delas também, pode ser benéfico: aqui é tudo ao mesmo tempo representação e presença, real e artificial. O teatro é uma máquina paradoxal que permite que nos observemos de fora ao mesmo tempo que fazemos parte da representação. As suas situações e práticas são simbólicas e autênticas ao mesmo tempo. O teatro só é verdadeiramente político quando faz uso desta força.

 

Florian Malzacher „Not Just a Mirror. Looking for the Political Theater of Today“, Alexander Verlag 2015