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Ulrich Köhler
Ambivalência e complexidade

Ulrich Köhler
Ulrich Köhler | Foto: © déjà-vu film

Ulrich Köhler é um dos nomes de maior destaque da Escola de Berlim. Pode-se admitir de consciência tranquila que, com apenas cinquenta anos de idade, o realizador pode olhar para trás e contemplar uma verdadeira obra. Uma obra que se une sob uma visão muitas vezes humorística repleta de ambiguidades e contradições de um mundo que reivindica factualidade. Em 2020, a KINO dedica a secção Foco ao realizador, apresentando uma retrospetiva da sua obra.

De Tobias Hansen

Nas entrevistas que concede deixa sempre a impressão de ser alguém descontraído. No entanto, adivinha-se um certo dinamismo na atitude de Ulrich Köhler: no modo como fala, no fluxo de ideias que lhe é subjacente. Esta aparente contradição parece estar em perfeita sintonia com a obra fílmica de Köhler, uma vez que também as suas longas-metragens, cinco até à data, possuem a contradição como denominador comum. Retratos em que não nos detemos, personagens fugazes, que marcam passo, que colhem a nossa simpatia, não obstante a sua própria estranheza. Ainda que nunca falem dele mesmo, esses filmes revelam bastante informação de cariz pessoal acerca de Köhler, que após a rodagem de um filme, uma e outra vez, sempre constata que aí compôs uma figura que bem poderia ser ele mesmo.

O privilégio de não ser igual

Tendo nascido a 15 de dezembro de 1969 em Marburg an der Lahn, no estado de Hessen, Köhler viveu dos cinco aos nove anos de idade no Zaire, onde os seus pais desenvolviam atividade de cooperação no campo da ajuda externa. Em retrospetiva, Köhler apercebe-se de que a sua vida nesse lugar lhe demonstra o quanto ele é privilegiado: por exemplo, quando ele e as restantes crianças, filhas dos demais brancos que se dedicam ao trabalho de ajuda ao desenvolvimento, se vêem, em virtude da quantidade de brinquedos de que dispunham e do estatuto social de que gozavam, despudoradamente na situação de escolher quem poderá ser seu amigo e quem não poderá.

Ao voltar para a Alemanha, a integração não se torna mais fácil. No início da quarta classe, relata Köhler, houve um colega que se solidarizou com ele, explicando que, sendo um «turco» e o outro «africano», deveriam manter-se unidos. Isto durou até Köhler ter conseguido o seu primeiro muito bom, altura em que o outro lhe deu a entender que não queria ter nada a ver «com um marrão».

Viver no estrangeiro incutiu em mim uma consciência bem clara de que sou alemão e tenho origem num determinado meio cultural e social. Talvez só desenvolvamos esse tipo de consciência depois de deixarmos a própria pátria ou se porventura a perdermos.

Ulrich Köhler

O caminho que o levou ao cinema

Depois do percurso escolar, que realizou durante uns tempos nos EUA, no âmbito de um intercâmbio, Köhler começa a estudar Arte na localidade francesa de Quimper, na Bretanha. Só então descobre a sua paixão pelo cinema, com o qual até então pouco contacto tivera, em virtude do ambiente de pequena cidade em que crescera e das opções pedagógicas dos seus pais, que não toleravam a presença de um televisor em casa. 

Ao curso de Arte seguem sete anos na Escola Superior de Artes Plásticas de Hamburgo, a estudar Filosofia e Comunicação Visual. É durante esse tempo que Köhler aprende as técnicas e ferramentas do ofício fílmico.

Uma retrospetiva realmente breve

Depois de uma série de curtas-metragens dignas de nota, entre as quais Palü (1998) e Rakete (1998/1999), Köhler realiza em 2001/2002 a sua primeira longa-metragem. Bungalow é um «road movie fracassado» acerca de um jovem oriundo da classe média e de um ambiente rural, que tenta entender onde é que afinal pertence e o que quer. Não sendo um herói nem um anti-herói, é precisamente mediante a sua maneira de agir incompreensível e letárgica que ele consegue despertar a nossa compaixão.

A segunda longa-metragem de Köhler, intitulada Montag kommen die Fenster [As Janelas Chegam na Segunda-feira] (2004-2006), é uma caminhada numa corda bamba entre a apresentação da estreiteza social a que a protagonista tenta escapar e a recusa artística em conferir a essa fuga para a frente uma nota trágico-melancólica. O filme não escolhe como tema a transformação da figura principal através de uma crise singular nem tão-pouco o encorajador resultado desse processo, lançando em vez disso um olhar autêntico sobre uma existência a que nada falta.
  • A Doença do sono Imagem: © Komplizen Film GmbH
    Uma complexa obra fílmica aos cinquenta anos. Imagem do filme A Doença do Sono (2010/2011).
  • Bungalow Paul Imagem: © déjà-vu film
    Paul (Lennie Burmeister) joga às escondidas com o Exército Federal em Bungalow (2001/2002).
  • Bungalow Paul & Kerstin Imagem: © déjà-vu film
    Paul (Lennie Burmeister) feriu o pé. A sua namorada Kerstin (Nicole Gläser) segue-o. Do filme Bungalow (2001/2002).
  • Montag kommen die Fenster Nina II Imagem: © ö-Filmproduktion GmbH
    Nina (Isabelle Menke) a relaxar em As Janelas Chegam na Segunda-feira (2004-2006).
  • Montag kommen die Fenster Nina I Imagem: © ö-Filmproduktion GmbH
    As Janelas Chegam na Segunda-feira (2004-2006), mas Nina (Isabelle Menke) só se quer ir embora.
  • Schlafkrankheit Ebbo & Vera Imagem: © Komplizen Film GmbH
    Ebbo (Pierre Bokma) e Vera (Jenny Schily) na cama em A Doença do Sono 2010/2011.
  • Schlafkrankheit Ebbo & Alex Imagem: © Komplizen Film GmbH
    Ebbo (Pierre Bokma) e Alex (Jean-Christophe Folly) em A Doença do Sono (2010/2011).
  • In My Room Armin & Kirsi Imagem: © Leopardo Filmes
    Armin (Hans Löw) e Kirsi (Elena Radonicich) em In My Room (2016-2018).
  • In My Room Kirsi Imagem: © Leopardo Filmes
    Kirsi (Elena Radonicich) reivindica o que, nas utopias, costuma caber só aos homens: o seu espaço para si mesma. Imagem do filme In My Room (2016-2018).
  • Das freiwillige Jahr Urs Imagem: © Patrick Orth / Sutor Kolonko e.K.
    Urs (Sebastian Rudolph) acredita querer mais para a sua filha Jette do que julga ter ele mesmo. Imagem do filme Um Ano de Voluntariado (2018-2019).
  • Das freiwillige Jahr Jette & Mario Imagem: © Patrick Orth / Sutor Kolonko e.K.
    Jette (Maj-Britt Klenke) e Mario (Thomas Schubert) na carrinha em Um Ano de Voluntariado (2018/2019).
O filme seguinte de Köhler, Schlafkrankheit [A Doença do Sono] (2010/2011), que foi rodado nos Camarões, fala de um mundo que ele próprio conhece bem. Deparou-se com essa realidade no Zaire, ainda criança. No filme explora a ideia de como teria sido se o seu pai ou a mãe se tivesse visto entregue a si mesmo, no meio do desconhecido, colocando assim a pergunta: «Em que medida consegue uma pessoa desembaraçar-se das suas raízes sociais de modo a que, ao fazê-lo, não corra o risco de se perder?» Só com o regresso ao local a que está ligado por «recordações de infância muito felizes» é que Köhler se apercebe do quanto a vida lhe é difícil num meio em que é sempre um «forasteiro privilegiado» e em que se encontra «no centro das atenções».

Através de In My Room (2016-2018), Köhler explora cinco anos mais tarde uma outra questão, também ela fundamental: «Livres dos constrangimentos sociais, que somos nós afinal? Quem somos nós, então? E de que somos feitos? Se somos um produto das nossas interações sociais, o que somos ou passamos então a ser quando de repente estas deixam de existir?» O cenário que suscita um ambiente distópico e que Köhler desenvolve a partir desta questão é, também ele, uma análise, típica neste cineasta, da geração burguesa do seu tempo, uma geração a que nada falta, com os problemas inerentes ao luxo em que vive.

Apesar de Köhler acreditar «não [ser] capaz de fazer filmes acerca de mundos quotidianos que [ele] mesmo [desconhece]», depois dos seus dois filmes de cariz bastante pessoal – A Doença do Sono e In My Room – tenta ganhar espaço e distância para a criatividade. É o que se torna patente em Das freiwillige Jahr [Um Ano de Voluntariado] (2019), produto de uma colaboração com Henner Winckler. O resultado é um poço de contradições chamado Urs e o modo como este projeta na sua filha as suas próprias ambições – oportunidades que foram desperdiçadas. Imbuído de um espírito de liberalidade e abertura ao mundo, este empurra-a para passar um ano no estrangeiro, numa ação de voluntariado, longe da vida enfadonha de um meio provinciano.

Os hábitos e a ilusão da autonomia

A escolha recorrente, por parte de Köhler, da província do estado de Hesse enquanto cenário não é, de modo algum, uma coincidência. Afinal de contas, foi aí que – salvo algumas interrupções – ele cresceu e é aí, «entre as suaves colinas», como ele próprio diz, que se sente em casa. Ainda que, na realidade, tenha vivido mais tempo em cidades do que no campo, a verdade é que em Berlim, quando de manhã vai beber um café ao sítio do costume em Prenzlauer Berg, continua ainda hoje a sentir-se como um intruso, que se limita a fingir que está à vontade na cidade.
 
Prenzlauer Berg Um pequeno-almoço em Prenzlauer Berg. | Foto: pixabay © cozmicphotos
Porventura será justamente esta intranquilidade que leva Köhler a fazer filmes, a criar arte. A «arte política», a arte enquanto meio para alcançar um objetivo político, pouco lhe interessa: «Se a arte é política, é-o precisamente no sentido em que se recusa a ser utilizada e aproveitada pela política quotidiana e pela sociedade. A sua força reside na sua autonomia. Ainda que tal possa ser uma ilusão – pois cada obra artística é também o produto de um mercado – a arte é uma utopia necessária para o artista.»