A trajetória singular de Ulrike Ottinger
Do Novo Cinema Alemão ao feminismo queer
O 19° Doclisboa prestou homenagem à realizadora e fotógrafa alemã Ulrike Ottinger, apresentando uma retrospetiva integral inédita, com 27 obras, e a exposição intitulada Livro de Imagens, no Museu do Oriente. Numa tarde na Cinemateca Portuguesa, Ottinger concedeu essa entrevista à revista do Goethe-Institut Portugal, em que relembra sua trajetória singular, filmes que vão dos 11 aos 501 minutos, feminismo queer, e dificuldades financeiras para realizar grandes projectos.
De Letícia Mendes
Ao crescer como aspirante a pintora em Constança, uma cidade no sul da Alemanha, no pós-Segunda Guerra Mundial, Ottinger decide mudar-se para Paris em 1962, quando tem 20 anos. É lá, nas salas da Cinemateca Francesa, que ela se apaixona perdidamente por cinema.
“A cultura cinematográfica alemã, que era tão grande nos anos 1920 e 1930, sumiu depois da guerra porque todos os diretores interessantes tiveram que ir embora do país. Quando era criança, vi alguns filmes franceses, mas dos 16 aos 20 anos não vi nada nem era tão interessada em cinema. Em Paris, pude ver de tudo e isso foi fantástico. Vi os grandes filmes de Hollywood, a nouvelle vague, filmes alemães, russos, independentes, filmes do Magrebe, do norte da África, da Indonésia… Essa foi a minha educação em cinema”, afirma Ottinger. A sua longa-metragem mais recente, Paris Calligrammes (2020), retrata essa fase da sua vida - o início nas artes plásticas - em meio às convulsões políticas da Guerra da Argélia e do Maio de 1968.
Aliás, a estreia de Paris Calligrammes no Festival de Berlim do ano passado foi, de certa forma, um ponto de partida para Ottinger iniciar um processo de reflexão sobre a sua obra, como refere Joana Sousa, co-diretora do Doclisboa. “Pareceu-nos interessante convidá-la a continuar a fazê-lo. O trabalho de Ottinger habita um universo muito único, atravessado pela influência das explorações etnográficas, pelo mundo da performance, do circo, em que as fronteiras entre mito e história se confundem. Pareceu-nos uma obra interessante de trabalhar no contexto do Doclisboa e era para nós fundamental mostrá-la integralmente para que estas tensões entre o fantástico e o real, a ficção e o documentário, se pudessem sentir e pensar de maneira aprofundada”, diz Joana.
Início em Berlim
Quando retorna para Constança, em 1969, Ottinger relata que, “como uma artista”, resolveu fazer as coisas sozinha, fundando um cineclube e uma galeria de arte. Assim, diz ela, foi “aprendendo fazendo”. Um dos artistas cujos trabalhos ela divulgou na sua galeria foi Wolf Vostell (1932-1998), que a convidou para ir a Berlim filmar um dos seus “happenings” em 1973.No mesmo ano, Ottinger muda-se de vez para a capital alemã e começa a fazer seus primeiros filmes ficcionais curtos, como Laocoon & Sons (1972/73) e The Enchantment of the Blue Sailors (1975). Este último, por acaso, é um dos filmes favoritos de Joana Sousa: “É um filme lenda, de uma beleza extrema e que, ao mesmo tempo, é construído com uma certa inocência característica da energia de jovens queer que querem criar algo juntos e acabam por encontrar um mundo fantástico mesmo com um orçamento reduzido”, aponta Joana.
Controvérsias
A essa altura, o movimento do Novo Cinema Alemão, liderado por nomes como Werner Schroeter e Rainer Werner Fassbinder, estava no auge. Em 1977, Ottinger lança a sua primeira e mais polémica longa, Madame X – An Absolute Ruler. Como a própria realizadora faz questão de lembrar, o filme foi exibido no horário nobre da TV alemã. “Toda a nação viu. E foi tal a reação! Pessoas de aldeias vieram em grandes grupos para Berlim e ficaram em pé em frente à nossa casa, na nossa rua. Eu nunca imaginei que haveria essa reação. Foi um grande escândalo, mas muitas pessoas ficaram muito felizes que as coisas estavam sendo faladas.”.Na trama, uma pirata atrai várias mulheres entediadas, entre as quais a coreógrafa e cineasta feminista Yvonne Rainer, com a promessa de uma aventura em alto mar. Porém, Madame X revela-se uma tirana. A realizadora aponta essa contradição de certo segmento do movimento feminista ao basear-se em padrões hierárquicos e patriarcais. “Naquela época, era tão diferente do que era feito no cinema. Esse filme foi compreendido por muita gente, mas algumas pessoas não entenderam. A recepção foi muito dividida entre uma parte que dizia que alguém falou exatamente o que nós queríamos e mostrou isso de forma brilhante e outra parte que compreendeu mal o contexto artístico e só quis ver o contexto feminista de um modo direto e convencional”, conta Ottinger.
A sua próxima longa, Ticket of No Return (1979), é a primeira parte da “Trilogia de Berlim”, seguida por Freak Orlando (1981) e Dorian Gray in the Mirror of the Yellow Press (1984). A história de uma mulher determinada a beber até morrer também é protagonizada pela grande parceira e companheira de Ottinger, Tabea Blumenschein (1952-2020), artista que se tornou referência na vida noturna berlinense nos anos 1980.
Viajo porque preciso
Também em meados dos anos 1980, Ottinger mergulha profundamente em outras culturas. Nas suas muitas viagens à Ásia, organiza cadernos de materiais visuais e textos que serviam de guias para as filmagens. O seu primeiro documentário desse estilo “diário de viagem” é China. The Arts – The People (1985), em que retrata da ópera de Sichuan aos estúdios de cinema de Pequim. Já um dos seus filmes mais famosos - principalmente por contar com a última atuação da estrela Delphine Seyrig antes de morrer -, Johanna d’Arc of Mongolia (1989) começa como ficção, mas logo mistura-se à realidade. A seguir, Ottinger lança Taiga (1991/92), a sua obra mais longa, com cerca de oito horas de duração, também filmada na Mongólia.É sempre mais difícil para as mulheres trabalharem no cinema, especialmente se você faz as coisas de forma diferente, com outra estética.
Ulrike Ottinger
Já Ottinger diz que um dos seus filmes menos falados e que merece um relançamento é Twelve Chairs (2004). Adaptado do romance dos escritores soviéticos Ilya Ilf e Evgueni Petrov, o filme acompanha um casal de vigaristas na União Soviética em 1927. “Eu não sei o porquê, mas esse filme desapareceu. Especialmente hoje é tão importante vê-lo, com todas as mudanças na Rússia e na Ucrânia. Quero de qualquer forma lançá-lo novamente."
Apesar de ser muito conhecida pelos seus documentários, Ottinger afirma que queria ter realizado mais filmes de ficção, mas que nunca conseguiu dinheiro para fazê-los. Questionada se isso tem relação com o facto de ela ser uma mulher, a realizadora diz que sim. “É sempre mais difícil para as mulheres trabalharem no cinema, especialmente se você faz as coisas de forma diferente, com outra estética. No começo, algumas pessoas diziam ‘ela não sabe o que faz’, ‘ela não é profissional o suficiente’. Tenho certeza de que se eu fosse um homem, teria tido mais possibilidades de conseguir financiamento para grandes filmes. Teria sido mais fácil.”
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