Acesso rápido:

Ir diretamente para o conteúdo (Alt 1) Ir diretamente para a navegação principal (Alt 2)

Violência sexual no set de filmagem
"O que não está combinado, não está bem!"

Em 2015, todas elas participaram num casting em que foram assediadas: as cinco atrizes do novo filme de Alison Kuhn, "The Case You". Algumas das intervenientes daquele casting estão atualmente envolvidas em processos judiciais por abuso dos seus direitos de imagem.
Em 2015, todas elas participaram num casting em que foram assediadas: as cinco atrizes do novo filme de Alison Kuhn, "The Case You". Algumas das intervenientes daquele casting estão atualmente envolvidas em processos judiciais por abuso dos seus direitos de imagem. | Foto (detalhe): © mindjazz pictures

Assédios durante os castings, cenas de violação não anunciadas durante as filmagens: até mesmo na indústria cinematográfica existe violência sexual. O novo filme da realizadora Alison Kuhn mostra os efeitos nas pessoas atingidas: em "The Case You", cinco pessoas afetadas falam-nos das suas experiências.
 

De Eleonore von Bothmer

Frau Kuhn, qual a razão para rodar “The Case You“ , um filme sobre a violência sexual?

Alison Kuhn é atriz e estuda realização na Universidade de Cinema Babelsberg KONRAD WOLF. O seu nome é conhecido por ter realizado vários filmes - nomeadamente o filme multipremiado "The Case You", sobre a violência sexual na indústria cinematográfica e sobre as repercussões dessas experiencias nas pessoas envolvidas. Este filme pode ser visto na KINO - Mostra de Cinema de Expressão Alemã 2022. Alison Kuhn é atriz e estuda realização na Universidade de Cinema Babelsberg KONRAD WOLF. O seu nome é conhecido por ter realizado vários filmes - nomeadamente o filme multipremiado "The Case You", sobre a violência sexual na indústria cinematográfica e sobre as repercussões dessas experiencias nas pessoas envolvidas. Este filme pode ser visto na KINO - Mostra de Cinema de Expressão Alemã 2022. | Foto (detalhe): © Christian Zipfel No início da minha carreira de atriz fiz um casting onde chegaram a acontecer terríveis abusos sexuais, sendo centenas de jovens mulheres as vítimas. Por um lado, muitas atrizes foram tocadas e por vezes agredidas sem consentimento durante a cena da audição. Mais tarde foi produzido um "filme documentário" a partir deste material sem que tivesse sido autorizado, o que representa praticamente um duplo abuso. Algumas das atrizes envolvidas decidiram tomar medidas legais contra o abuso dos seus direitos de imagem.

Essas mulheres foram apoiadas por alguém?

A plataforma "crew united" fez um ótimo trabalho ao permitir que as pessoas atingidas comunicassem entre si através do facebook. Foi dessa maneira que conheci as mulheres que expressam a sua opinião no meu filme. No entanto, a verdadeira razão para a realização do filme foi outra.

Então qual foi essa razão?

Durante o meu exame de admissão ao curso de realização da Escola Superior de Cinema de Potsdam-Babelsberg houve uma pessoa que me reconheceu por também ter estado nesse terrível casting. Isso despertou em mim muitos sentimentos que, de alguma forma, tinha de canalizar. Senti-me paralisada. Acabei por dizer a mim própria: "Se eu conseguir entrar aqui, faço um filme sobre esse tema". Foi bom sentir que estava a transformar uma coisa desagradável em algo construtivo. De repente, voltei a ter energia para o exame.

O movimento MeToo aborda frequentemente situações de abusos sexuais que acontecem durante as filmagens. A indústria cinematográfica facilita esse tipo de estruturas?

Em todos os sítios onde há sistemas hierárquicos fortes, existe um poder estrutural. O que acontece na indústria cinematográfica não é muito diferente das grandes empresas, por exemplo. A estrutura da produção de um filme é hierárquica e tem de o ser para funcionar bem. Mas é simultaneamente terreno fértil para esse tipo de abusos de poder. Além disso, esses abusos não acontecem apenas a mulheres mais jovens. Homens e atrizes mais velhas são igualmente vítimas.

Esta experiência influenciou-a como realizadora?

É natural que tenha agora uma consciência bastante mais clara sobre o papel de realizadora. Sei que me obriga a ter um grande sentido de responsabilidade. Este trabalho tem muito a ver com confiança. As minhas próprias experiências tornaram-me mais sensível e aguçaram o meu sentido de alerta.

Como foi recebido o seu filme na indústria cinematográfica?

Houve um feedback muito positivo de todos os lados. Penso que muitas pessoas estão contentes por este assunto estar a ser abordado, porque na Alemanha não havia ainda nenhum filme sobre ele. Há também muitas pessoas que vêm ter comigo para falar das suas próprias experiências. Existe uma maior dinâmica, mais intercâmbio e também uma rede de contatos. Fico particularmente satisfeita quando as minhas colegas e os meus colegas realizadores dizem que abordam os castings de uma forma diferente.     

Porque que é que alguém tolera esses assédios durante as filmagens, mesmo com a presença de testemunhas?

Uma das protagonistas do meu filme disse-me que desistir a meio do casting não era uma opção para ela. Anteriormente tinha existido o aviso: “Desistir não é opção!” Havia uma clara hierarquia de poder. Pelo facto de toda a equipa das filmagens estar envolvida no casting, o assunto transformou-se em algo com uma forte dinâmica de grupo. Uma das atrizes envolvidas explicou que sentia uma espécie de abuso coletivo, pela razão de estarem muitas pessoas presentes e ninguém a ter defendido, quando ela própria não o conseguia.   

A vontade de se querer alcançar certos objetivos como atriz também torna a situação especialmente difícil?

Exatamente, é comparável a uma entrevista de emprego. Há muitos assuntos que dela dependem. A carreira, o aluguer da casa, outros trabalhos posteriores e muitas outras coisas. É evidente que o mesmo se passa em muitos outros ramos.
No filme "The Case You", Milena Straube faz o relato da sua experiencia no casting de 2015. Desde essa altura, a atriz tem trabalhado em várias produções teatrais e cinematográficas. No filme "The Case You", Milena Straube faz o relato da sua experiencia no casting de 2015. Desde essa altura, a atriz tem trabalhado em várias produções teatrais e cinematográficas. | Foto (detalhe): © mindjazz pictures Para além disso, as atrizes e os atores já têm muitas vezes de lidar com situações extremas, onde os limites rapidamente se tornam difusos.

Sim, por vezes a diferença entre a realidade e a representação não é clara. A intenção artística não é percetível imediatamente, em especial quando nos encontramos no meio de uma cena. Penso que antigamente a situação ainda era muito mais extrema e autoritária. Havia ainda a ideia do realizador como um génio. No filme O Último Tango em Paris, por exemplo, a atriz foi surpreendida com uma cena de violação para que mostrasse uma reação autêntica. Para além de muitas outras coisas erradas, a situação também sabota a profissão de ator/atriz. Afinal, os atores e atrizes são treinados precisamente para representar algo e conhecem as ferramentas para o fazer.

O que se pode fazer como realizador/a para evitar estas situações perturbadoras?

É necessário definir claramente os limites numa fase preparatória. Tudo é  possível, desde que tenha sido combinado com antecedência. O que não foi acordado não está bem! A empatia é importante. E é importante comunicar com todos os membros da equipa ao mesmo nível.