Cultura em tempos de pandemia
Do confinamento até ao palco – atravessando a pandemia no coletivo teatral

A cultura padece em todo o mundo com as consequências da pandemia. Portugal é um dos poucos países europeus que mantém as produções culturais em funcionamento. No entanto, os criadores e produtores da área da cultura confrontam-se com grandes desafios. Eva Gür foi ouvir alguns protagonistas da cena teatral.
De Eva Gür
Há uma longa fila em frente ao Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Distância de segurança. Medição da temperatura. Desinfeção das mãos. E, naturalmente, a máscara obrigatória. Uma ida ao teatro no outono de 2020 é tudo menos normal. O espetáculo está esgotado; no entanto, só um lugar em cada dois está ocupado. Suspeito até que se pigarreia menos no público. Depois tem início o espetáculo. A encenação foi preparada para haver maior distância. Uma das atrizes está dentro de um cubo gigante de acrílico. Terá sido intencional? Não propriamente. Talvez tenha acontecido de forma inconsciente.
O coletivo teatral Auéééu Teatro, de Lisboa, é composto por Beatriz Brás, Filipe Velez, Joana Manaças, João Oliveira Santos, Jean Luís Silva, Miguel Cunha e Sérgio Coragem. Nos últimos meses, conseguiram fazer a espargata entre os ensaios em quarentena e a produção da peça F, que levaram aos palcos do Teatro D. Maria II e do Teatro S. Luiz. Em simultâneo. Com mudança de cenários. Porque para esta peça fizeram como se a companhia tivesse entrado em conflito e dividido em dois campos. Supostamente tinham planeado fazer a peça Leão Marinho, de Samuel Beckett. Mas depois veio o conflito, em sequência do qual cada metade do grupo apresentou a mesma peça, com o mesmo nome, ao mesmo tempo. No entanto, no final de contas, não foi encenada a controversa peça Leão Marinho, mas sim F. Desenrola-se o processo, chega o clímax do conflito, que o leva ao ponto do ridículo. Trata-se de falar da verdade. De falar de identidade. De autoria e farsa. Na verdade, tudo temas que estão na ordem do dia. Se não fosse aquele tipo pequeno, miserável, aquela esfera com penteado espetado a dominar os títulos dos jornais.
Incerteza – o novo sentimento de todos os dias
Em Portugal, depois de todas as produções culturais terem sido canceladas, na primavera, ou adiadas sem data ou até data incerta, e depois de, em princípios de junho, as instituições culturais serem autorizadas a abrir, com muitos cuidados e medidas rigorosas, os produtores culturais têm agora a possibilidade de apresentar as suas produções, cumprindo, porém, certas normas de segurança. Tanto no interior do grupo como no próprio local do evento. Para os atores, isto significa submeterem-se regularmente a testes ao covid e uma incerteza permanente: vai ser ou não possível realizar o espetáculo? «Estamos sempre na possibilidade do espectáculo ser cancelado. Ou seja, nós estivemos estes meses todos a trabalhar, na possibilidade de estar a trabalhar para nada», diz Beatriz Brás.
Distância: medida de segurança e desafio do nosso tempo
Durante a quarentena, na primavera, o coletivo teve de encontrar vias de chegar à comunicação recorrendo às possibilidades técnicas, por Zoom ou Skype. No teatro, este diálogo processa-se, normalmente, cara a cara, em pessoa. Os ensaios vivem da expressão, da mímica e do contacto corporal. O que resta disso quando o ecrã se torna a barreira, e ao mesmo tempo a janela, para a realidade? «O desafio foi tentar perceber como é que, à distancia, e a olhar para um computador, nós conseguíamos fazer passar as ideias e as convicções acerca do que seria o novo projeto.», explica Sérgio Coragem, em retrospetiva.
Ensaios por videochamada, problemas com as ligações à internet e quebras de comunicação a meio do processo criativo passam, de repente, a fazer parte do dia a dia dos sete atores do coletivo. «A comunicação era muito cansativa. Ou seja, uma hora em videochamada não tem nada a ver com uma hora presencialmente», acrescenta Beatriz. Não podemos esquecer que o contacto e a proximidade são imprescindíveis, mesmo no processo de criação. Para os atores da companhia, a residência artística no espaço cultural Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo, foi, por isso, decisiva para haver ensaios com qualidade. «O que aconteceu por causa desta crise de saúde pública não afetou de modo algum aquilo que foram os ensaios a partir do momento em que eles foram presenciais. Ou seja, nós tivemos a oportunidade de fazer uma residência artística (em Montemor). Fizemos o teste, e uma vez que deu negativo, nós só tínhamos de cumprir as regras básicas, como utilizar a máscara fora dos ensaios e não sair do espaço onde estávamos a residir e a trabalhar», diz Sérgio.
Num tempo em que o mundo está paralisado por confinamentos e inúmeras medidas de segurança, e as respetivas consequências, nos diferentes domínios, não são ainda previsíveis, a cultura sente-se como que paralisada. Irá a cultura, tal como a conhecemos e vivemos atualmente, ser transformada radicalmente por causa da crise sanitária? Esta é a grande questão e a preocupação legítima, com a qual também esta companhia teatral se tem confrontado nos últimos meses, como afirma Beatriz: «Isso foi uma questão em que nós, enquanto grupo de teatro, batemos muito durante a quarentena. Porque existem muitos movimentos teatrais ou performáticos em vídeo. E se isso faria sentido para nós, continuar a fazer teatro assim. E houve, como sempre, muitas discordâncias dentro do coletivo. Achamos que é possível, sim, é outra coisa, tem outra qualidade mas porque não; e outros dizem que não, assim já não é teatro. Nós até fizemos uma espécie de rádio em forma de vídeo que era baseado num espetáculo que nós tínhamos antigamente, fizemos isso online e correu bem e foi giro, mas lá está, é outra coisa e nós não queremos perder este encontro com o público, que é muito importante.»
A questão é saber se a cultura, nas redes sociais, pode ser mais qualquer coisa do que nos deixarmos invadir por conteúdos a duas dimensões. Faz muita diferença estarmos diante de um ecrã, em frente ao qual já passamos, de qualquer maneira, uma grande parte do nosso tempo, a ver alguma coisa, sozinhos ou em família, fechados no nosso quotidiano privado, ou se seguimos o ritual de deixar as nossas quatro paredes, ir com pessoas conhecidas e desconhecidas até um espaço que nos convida para um mundo diferente, criado por aqueles que alimentam o nosso espírito com o seu trabalho. Por esta razão, os artistas deveriam lutar por aquilo que a arte deve ser, e não pelo que deverá ser em função da pandemia, afirma Sérgio Coragem: «Ir assistir a um espetáculo, desde que se cumpram as regras, não tem risco nenhum. Portanto, exigir isso de um artista é, a meu ver, destrutivo e restringe, um artista não pode sentir-se restringido por nada. Portanto, acho que devemos ter força e vontade de lutar para manter as coisas como são, música, teatro, concertos, exposições, e acho que, com calma e inteligência, nós conseguimos contornar sem magoar aquilo que é a convenção das diferentes expressões artísticas.»
Pelas 21 horas, termina a peça F. Sim, são só 21 horas. Também isto faz parte das novas medidas, porque às 23 horas toda a gente tem de estar em casa. Os baixos da música em alto volume dão-me a boa sensação de ter saído. Troco olhares com outras pessoas do público. Esticar um pouco as pernas e os braços e sentir a magia a agir sobre nós. No palco, as coisas são arrumadas freneticamente. Miguel Cunha desinfeta e limpa com enorme cuidado o cubo gigante de acrílico. Para retirar vestígios ou para nos apresentar um espelho? Já quantas vezes lavei as mãos hoje?