Portugal na Feira do Livro de Leipzig
Uma odisseia no espaço editorial alemão

Adiada em 2021 e cancelada em 2022, a participação de Portugal como País Convidado na Feira do Livro de Leipzig continua a lançar sementes e a colher frutos. A festa não se realizará presencialmente, mas a diversidade das literaturas em língua portuguesa continuará a surpreender o leitor alemão.
De Luís Ricardo Duarte
“Cooooool”, disse, animado, o pequeno Tim. De visita à Feira do Livro de Leipzig, na edição de 2019, entrara a meio da apresentação do livro infanto-juvenil O Museu do Pensamento, de Joana Bértholo, e por ali se deixou ficar. Rapidamente se intrigou com a ideia de um tal museu, dedicado a tudo o que temos cá dentro, na cabeça. Percebendo o seu interesse, a escritora perguntou, com a ajuda de um tradutor, como o imaginava. “Uma cabeça enorme, cheia de engrenagens e mecanismos complicados”, respondeu o novíssimo leitor. Joana Bértholo, no entanto, desfez tamanha complexidade. “No meu livro, é muito mais simples. Basta entrares no museu, colocares um chapéu na cabeça e começas logo a pensar nos assuntos mais estranhos e curiosos”, acrescentou. Foi nessa altura que Tim, de 8 anos, lançou o seu sonoro “cooooool”.
“Cool” é seguramente a reação que qualquer escritor, autor, editor ou agente ambiciona numa feira do livro em que se procura apresentar ao leitor alemão a literatura de outro país, em alguns casos desconhecida da generalidade da população. E foi em busca desse cool e de muitas oportunidades de publicação que Portugal preparou, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, da Embaixada de Portugal na Alemanha, do Instituto Camões em Berlim, da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, da AICEP e do Turismo de Portugal, a sua participação como País Convidado na Feira do Livro de Leipzig, a maior feira alemã do género dirigida ao público em geral e só superada pela de Frankfurt, de cunho profissional.
Conselheira Cultural na Embaixada de Portugal na Alemanha, Patrícia Salvação Barreto também tem ouvido muitas reações de entusiasmo quando detalha a alguns dos seus interlocutores a verdadeira dimensão do universo da língua portuguesa. “O espanto é maior quando se apercebem que os 11 milhões de falantes europeus passam a 280 em todo o mundo”, lembra a atual responsável pela participação portuguesa na Feira do Livro de Leipzig. “Há uma literatura muito efervescente e variada. E essa diversidade conquistou os editores e os livreiros alemães”.
Sentimentos e vivências literárias
A aposta na Feira do Livro de Leipzig, que culminou no convite para País Convidado na edição de 2021, começou em 2016, com a criação de um pavilhão de representação nacional. “Perante a dimensão dos desafios sociais atuais, cremos na importância e poder de transformação da cultura como pilar essencial da democracia e no papel da diplomacia cultural como instrumento dessa transformação”, defendia Ana Patrícia Severino, à época Conselheira Cultural da Embaixada de Portugal na Alemanha e promotora da aposta na Feira de Leipzig. Nos anos seguintes, o espaço passou a ser animado por encontros entre escritores e editores portugueses e alemães, a que se associou uma residência literária em Berlim. Com a formalização do convite, a programação cultural tornou-se mais abrangente, incluindo autores africanos de expressão portuguesa e alguns brasileiros. A pandemia acabou por trocar as voltas a todos os envolvidos. Como medida de proteção contra a disseminação da Covid-19 na Alemanha, a Feira foi cancelada em 2021, tendo a participação portuguesa sido adiada para 2022. Com novo cancelamento este ano e com as edições futuras reservadas à Áustria, em 2023, e aos Países Baixos, em 2024, uma festa grande não se fará, mas isso não limitará a divulgação de autores, livros e literaturas.“Com todo o investimento já realizado, não só financeiro, mas também de empenho, entusiasmo, divulgação e tradução de livros, não faria sentido desperdiçar a atenção que conseguimos reunir à voltada da participação portuguesa”, garante Patrícia Salvação Barreto. “Continuaremos a organizar eventos literários, mais intensamente nas datas em que a feira ia realizar-se, mas também depois, porque o interesse mantém-se”. A conselheira cultural dá como exemplo uma reunião recente muito participada que teve com livreiros alemães e a adesão a um concurso de montras que já tem mais de 80 inscritos. “Os leitores estão curiosos, querem saber das novidades, mostram vontade em comprar livros”, acrescenta.
Traduzir novas escritas
Incentivadas por várias linhas de apoio à tradução da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas e do Camões I.P., algumas editoras alemãs contrariaram a resistência em traduzir livros de línguas menos óbvias. Apesar de falada no mundo inteiro, a Língua Portuguesa ainda procura a posição que merece no mercado germânico, um dos mais dinâmicos do mundo. Segundo dados recentes, na Alemanha publicam-se por ano muitas traduções, mas apenas 0,4 por cento dizem respeito a autores de literaturas lusófonas.O cenário nem sempre foi tão negativo, nomeadamente no final dos anos 90, quando Portugal foi País Convidado da Feira do Livro de Frankfurt e recebeu, com José Saramago, o seu primeiro Prémio Nobel de Literatura. Viveu-se então uma popularidade sem paralelo em torno da literatura portuguesa que de certa forma se ambiciona recuperar.
A oportunidade, diga-se, não tem sido desperdiçada. O novo estatuto de Portugal como País Convidado, agora em Leipzig, tem permitido voltar a alargar a oferta de livros disponíveis em língua alemã, quer de clássicos, quer de novos autores, incluindo provenientes de países africanos de expressão portuguesa. Só nos últimos 18 meses foram apoiados “54 títulos de diversos géneros literários, que espelham algumas das escritas contemporâneas”, detalha Patrícia Salvação Barreto. “O apoio à tradução não explica todo o empenhamento dos editores e livreiros alemães. Há uma aposta clara e um reconhecimento do potencial e da qualidade das literaturas em língua portuguesa”.
Para Oliver Zille, diretor da Feira do Livro de Leipzig há vários anos, esta aposta não é surpresa. “A experiência diz-nos que os leitores alemães têm uma enorme curiosidade em relação ao País Convidado. Há uma predisposição para a novidade e para a descoberta, fruto de uma postura muito ativa, sobretudo do leitor de literatura”. Na sua opinião, este também é um bom momento para esta divulgação: “Desde que Portugal esteve em destaque na Feira do Livro de Frankfurt, em 1997, passaram-se duas décadas. Hoje enfrentamos desafios muito diferentes, que dão origem a respostas literárias igualmente distintas”.
Numa época de tanta dúvidas, uma certeza une Oliver Zille e Patrícia Salvação Barreto: “O estatuto de País Convidado é o início de uma viagem, nunca o fim”. A odisseia no espaço editorial alemão só agora começou.