Com uma primeira publicação em 1992, este livro notável de Martin Gross recolhe anotações ou apontamentos do ano de 1990, feitos na ainda República Democrática Alemã. São escritos no preciso ano em que se deu, a 3 de outubro, a reunificação dos dois Estados alemães, na sequência da queda do Muro de Berlim, em 1989.
Foram necessários, contudo, quase 30 anos para que este livro tivesse a visibilidade merecida e encontrasse um público mais vasto, pela mão de Jan Wenzel, cujo livro de 2019 (e respetiva exposição), Das Jahr 1990 freilegen [Revelar o ano de 1990], se baseia em boa parte neste livro de Martin Gross, literalmente resgatado do esquecimento.
A obra tem uma estrutura diarística e abarca todo o ano de 1990 e ainda o início de 1991. Martin Gross viveu, durante este período, praticamente sempre na antiga RDA, mais precisamente em Dresden, para observar de perto todo o processo de mudança e da reunificação que já se anunciava.
Num registo que mistura a anotação diarística breve e a reportagem em torno de personagens e acontecimentos diversos, é, ao mesmo tempo, uma espécie de romance epistolar (o autor escreve a quem tem em casa, «do outro lado», na RFA), juntando a experiência de quem chega e vê, o próprio Martin Gross, à das pessoas cuja vida na RDA vai conhecendo.
Uma jornalista, um comerciante de produtos naturais, um guarda de uma prisão da Stasi, um fogueiro, um gerente de supermercado, uma funcionária da limpeza, são algumas dessas personagens cujas vidas, prestes a mudar de rumo, perscruta. A perspetiva é a de alguém que vem «de fora» e vê com olhos de quem vem «do outro lado», mas a partir de dentro, «in loco». O que vai mudando após a queda do Muro de Berlim, muito rapidamente, embora seja descrito quase em câmara lenta, acontece em grande parte ainda antes da reunificação: a chegada do capitalismo mais ou menos selvagem, sob diversas formas; a aprendizagem de uma nova linguagem (também de uma nova versão da língua alemã); a introdução de novos costumes e formas de estar. É a «anexação» de que falará Günter Grass, é a «compra» da RDA por parte da RFA e a imposição de um modelo económico e social.
O tom sóbrio dos relatos, mas longe de ser emocionalmente distanciado, mostra um repórter que se envolve muito de perto com as pessoas, com os acontecimentos, de uma forma ao mesmo tempo melancólica e crítica, como se pode ler numa das breves anotações acerca da mudança que observa e da mudança que imagina também ser possível e desejável para a «sua» Alemanha: «Que pena, quando vejo estas pessoas, como tudo muda para elas, fico a pensar: porquê só elas? Porque é que nós não temos também a oportunidade de mudar tudo? Passar pela aventura de perceber que também poderíamos fazer as coisas de maneira muito diferente. Mas, ao que parece, ao meu encontro só vem a vida tal qual a conheço.» O «país fora de validade», expressão que denota a caducidade política e histórica de um país, obriga ao questionamento do país que a História fez vencedor.