Rendimento básico incondicional
Utopia ou mudança necessária de paradigma?

A ideia de um rendimento básico incondicional parece seduzir um grande número de pessoas. No entanto, a viabilidade desta ideia e sobretudo a forma como ela poderá ser colocada em prática tem originado, ao longo dos anos, uma larga controvérsia entre leigos e especialistas na matéria. Uma iniciativa agora nascida em Berlim procura dar respostas inovadoras, o que poderá impulsionar o debate do tema na Alemanha.
De Lea Hampel
Quando Lisa Buchenauer leu o email pela primeira vez, pensou tratar-se de spam. Lisa encontrava-se no elétrico de Leipzig, a caminho de casa, e não se cansava de ler e reler o email, fazendo deslizar o texto para cima e para baixo. Não acreditava nos seus próprios olhos: era uma das felizardas contemplada com o rendimento básico durante três anos. A doutoranda ficou tão surpreendida que enviou um email ao Instituto Alemão para os Estudos Económicos (DIW), a fim de confirmar a notícia junto de uma investigadora integrada no estudo “Projeto piloto rendimento básico”, no quadro do qual a jovem receberia o seu vencimento. Lisa Buchenauer ouvira falar por mero acaso do estudo iniciado pela associação berlinense “O meu rendimento básico”. Desde Junho de 2021 que Lisa começou então a receber mensalmente, na sua conta bancária, o montante de 1.000 Euros. O primeiro projeto piloto levado a cabo na Alemanha em torno do rendimento básico contempla três estudos sucessivos. O primeiro estudo, que decorre atualmente, começou com 1.500 participantes, dos quais 120 receberão, durante três anos seguidos, a quantia mensal que Lisa Buchenauer recebe também na sua conta. Os resultados serão avaliados em comparação com um outro grupo de estudo.
Uma ideia mais antiga que o Estado social alemão

Podemos, no entanto, aduzir que a ideia é mais antiga que muitos dos problemas para os quais pretende ser a solução. O economista norte-americano Milton Friedman é considerado um dos seus precursores, ainda que haja quem faça remontar a origem da ideia ao estadista britânico e autor humanista do Renascimento Thomas Morus.
O rendimento básico incondicional promove a felicidade ou a preguiça?
Há vários modelos sobre a mesa, quando se trata de colocar a ideia do rendimento básico em prática – desde o pagamento global a todos os cidadãos, cortando todas as outras contribuições sociais do Estado, como, por exemplo, o abono familiar, até ao imposto negativo sobre o rendimento, quando só teria direito ao rendimento básico quem auferisse um determinado vencimento mensal. Argumentos clássicos a favor da introdução desta ideia são os empregos que entretanto desapareceram com a emergência das novas tecnologias, os elevados custos administrativos com que se debatem as instituições sociais e a cada vez menor confiança do cidadão no Estado. Contudo, os contra-argumentos não são de menor peso: um rendimento básico para todos significaria a ruína do orçamento geral do Estado e acarretaria consigo o perigo do chamado “paraíso social”, podendo resultar no facto de todos deixarem de trabalhar. Para além disso, muitas outras questões continuam em aberto: que incentivos adicionais seriam atribuídos a pessoas com necessidades especiais ou a pessoas com limitações físicas, ou até a pais e mães solteiros? Que mudanças poderia o rendimento básico incondicional trazer para a noção de cidadania? As crianças deveriam receber o mesmo montante que recebem os adultos? Em caso afirmativo, até que idade deveriam os pais decidir o que fazer com o dinheiro? E que sucederia na nossa sociedade, quando já ninguém quisesse conduzir autocarros ou limpar casas de banho públicas?
É como se o RBI suprimisse o medo existencial e melhorasse a qualidade do trabalho.
Michael Bohmeyer
Lisa Buchenauer já está em condições de explicar de que modo o rendimento básico transformou a sua vida. “Se a minha máquina de lavar roupa se avariasse, não saberia como resolver o problema até há um ano atrás. Um doutorando não ganha propriamente uma fortuna e não está em condições de fazer poupanças”, observa a investigadora em nutrição. Lisa goza de maior segurança, tem, pela primeira vez na vida, um fundo de reserva, e sente-se feliz por não ter de preocupar-se com a inflação atual. No entanto, algum tempo decorrerá ainda até que os dados de Lisa e dos outros participantes sejam contabilizados no estudo em causa. Os primeiros resultados serão apresentados no verão de 2022, ainda que esta fase do estudo só termine em 2024. O projeto piloto terá, porém, continuidade após essa data. A associação pretende fazer estudos experimentais com montantes e tributações diversificados, aplicados a grupos de maior dimensão e de constituição também ela diversificada.

Impacto na taxa de divórcio e na saúde mental
O investigador Osterkamp tem uma opinião cética em relação a muitos dos estudos experimentais realizados até ao momento. Considera, por exemplo, que 122 participantes no estudo de Berlim é um número “extraordinariamente diminuto”, ainda que tal situação se prenda com os custos associados ao projeto. Quanto a outros estudos, critica, por exemplo, o público-alvo a que se dirigem, nomeadamente, no caso do projeto finlandês, que este se tenha circunscrito ao grupo dos desempregados. “Do ponto de vista científico, só reconheço, de facto, verdadeira qualidade a dois dos estudos realizados até ao momento. Os grandes estudos realizados nos Estados Unidos da América, há quatro décadas, foram conduzidos de forma muito sistemática, acompanhados cientificamente por várias universidades e contaram com uma amostragem significativa. O estudo que decorre atualmente no Quénia também parece promissor, porquanto tem a vantagem de se estender por um prazo alargado no tempo e englobar um grande número de participantes”, explica. Muitas das experiências apresentaram resultados deveras curiosos: aquando do estudo americano, a taxa de divórcios aumentou e, na Finlândia, a saúde mental das pessoas melhorou. Os primeiros resultados do projeto de Berlim serão conhecidos apenas no próximo ano. Bohmeyer adianta, no entanto: “Em nenhum projeto piloto de RBI levado a cabo a nível mundial se notam sinais de uma diminuição do tempo de trabalho. E também não esperamos encontrar esse impacto no nosso projeto piloto.” Bohmeyer pôde constatar nos últimos anos que a vida dos sorteados com o rendimento básico incondicional “se transformou significativamente, sem que tal resultasse em indolência ou inação. Pelo contrário: as pessoas tornam-se mais produtivas. Algumas mudam de emprego porque, sentindo-se mais seguras com o RBI, podem procurar a ocupação que verdadeiramente se adequa à sua personalidade. É como se o RBI suprimisse o medo existencial e melhorasse a qualidade do trabalho”, acrescenta Bohmeyer.Osterkamp oferece uma explicação bastante simples para o facto de nenhum país ter adotado, até ao momento, o rendimento básico incondicional, não obstante o grande número de estudos experimentais e resultados conhecidos: “Nenhuma experiência levada a cabo pode realmente oferecer respostas definitivas acerca das eventuais transformações comportamentais que o rendimento básico poderia provocar.” Por um lado, a mudança de paradigma causada pela adoção do rendimento básico pode assumir uma amplitude tal que nenhum estudo experimental seria capaz de simular, porquanto qualquer experiência está sempre circunscrita a um determinado período de tempo e a um público-alvo. É difícil de prever, de um ponto de vista científico, de que modo os salários, a motivação profissional e o clima social se transformariam, quando o vizinho, a professora e até a empregada doméstica começassem a receber o rendimento básico. As mesmas incertezas se podem constatar nas palavras de Lisa Buchenauer acerca da experiência por que está a passar: “Tenho sempre presente que o rendimento básico irá acabar um dia, pelo que não alterei o meu nível de vida”, observa. Por outro lado, partidários e opositores do RBI acabarão sempre por tirar as conclusões que lhes convêm a partir dos resultados alcançados, mesmo nos casos dos estudos mais importantes. Foi precisamente o que sucedeu com o aumento da taxa de divórcios no caso dos estudos norte-americanos. Para os opositores, serviu de argumento para reforçar que o rendimento básico promove a “decadência moral”. Os defensores viram no mesmo resultado uma evolução positiva: como as mulheres se haviam tornado independentes dos seus maridos, do ponto de vista económico, podiam finalmente emancipar-se e ter uma vida própria.
Estaremos, então, perante uma empresa inútil ao conduzir este tipo de estudos e ao debater o tema do rendimento básico? Osterkamp não tem essa opinião, defendendo que o debate do tema tem produzido bons resultados ao longo dos anos. O grande passo dado ultimamente nessa direção foi a chamada “remuneração do cidadão” (Bürgergeld), uma noção que teve, de resto, a sua origem no debate em torno do rendimento básico, prevista pelo atual governo alemão para substituir o subsídio de desemprego (“Hartz IV”) e tornar todo o processo mais fácil. “Trata-se de um passo dado no sentido do rendimento básico, sem querer dar-lhe esse nome”, observa Osterkamp. Lisa Buchenauer também não se encontra em condições de avaliar se o rendimento básico será, a longo prazo, uma verdadeira solução para os problemas económicos e sociais da atualidade. Não se considera uma defensora explícita da ideia, apesar de usufruir deste rendimento há um ano: “Na minha opinião, seria necessária uma mudança radical do sistema social, tal como o conhecemos.” Necessária seria igualmente, a seu ver, uma investigação mais vasta em torno deste tema, para a qual ela já dá, de resto, o seu contributo.
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