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Rendimento básico incondicional
Utopia ou mudança necessária de paradigma?

A Associação Suíça de Rendimento Básico levou a ideia até ao referendo - mas o povo suíço votou contra.
Foto (detalhe): Ennio Leanza © picture alliance / KEYSTONE

A ideia de um rendimento básico incondicional parece seduzir um grande número de pessoas. No entanto, a viabilidade desta ideia e sobretudo a forma como ela poderá ser colocada em prática tem originado, ao longo dos anos, uma larga controvérsia entre leigos e especialistas na matéria. Uma iniciativa agora nascida em Berlim procura dar respostas inovadoras, o que poderá impulsionar o debate do tema na Alemanha.

De Lea Hampel

Quando Lisa Buchenauer leu o email pela primeira vez, pensou tratar-se de spam. Lisa encontrava-se no elétrico de Leipzig, a caminho de casa, e não se cansava de ler e reler o email, fazendo deslizar o texto para cima e para baixo. Não acreditava nos seus próprios olhos: era uma das felizardas contemplada com o rendimento básico durante três anos. A doutoranda ficou tão surpreendida que enviou um email ao Instituto Alemão para os Estudos Económicos (DIW), a fim de confirmar a notícia junto de uma investigadora integrada no estudo “Projeto piloto rendimento básico”, no quadro do qual a jovem receberia o seu vencimento. Lisa Buchenauer ouvira falar por mero acaso do estudo iniciado pela associação berlinense “O meu rendimento básico”. Desde Junho de 2021 que Lisa começou então a receber mensalmente, na sua conta bancária, o montante de 1.000 Euros. O primeiro projeto piloto levado a cabo na Alemanha em torno do rendimento básico contempla três estudos sucessivos. O primeiro estudo, que decorre atualmente, começou com 1.500 participantes, dos quais 120 receberão, durante três anos seguidos, a quantia mensal que Lisa Buchenauer recebe também na sua conta. Os resultados serão avaliados em comparação com um outro grupo de estudo.
 

Uma ideia mais antiga que o Estado social alemão

O economista Rigmar Osterkamp tem acompanhado o tema do rendimento básico incondicional há anos. O economista Rigmar Osterkamp tem acompanhado o tema do rendimento básico incondicional há anos. | © privat Várias centenas de milhares de candidatos responderam ao apelo lançado em 2020 e inscreveram-se no estudo. Muitos destes interessados haviam sofrido cortes no seu vencimento devido à pandemia que grassava na altura, pelo que a iniciativa lhes dava esperança de voltarem a ganhar uma certa segurança durante alguns anos. Muitos deles não se limitaram a candidatar-se ao estudo e assinaram igualmente petições e cartas dirigidas ao governo federal no sentido de o rendimento básico ser instituído no país. “A ideia surge de vez em quando, em períodos regulares”, explica Rigmar Osterkamp, de modo algo lacónico. O economista ocupa-se da questão do rendimento básico desde há vários anos e prevê que seja uma questão relevante de tempos a tempos, como resposta à era digital, como estratégia para a simplificação dos apoios ao desemprego e como medida conducente à redução da burocracia social.
Podemos, no entanto, aduzir que a ideia é mais antiga que muitos dos problemas para os quais pretende ser a solução. O economista norte-americano Milton Friedman é considerado um dos seus precursores, ainda que haja quem faça remontar a origem da ideia ao estadista britânico e autor humanista do Renascimento Thomas Morus.

O rendimento básico incondicional promove a felicidade ou a preguiça?

Há vários modelos sobre a mesa, quando se trata de colocar a ideia do rendimento básico em prática – desde o pagamento global a todos os cidadãos, cortando todas as outras contribuições sociais do Estado, como, por exemplo, o abono familiar, até ao imposto negativo sobre o rendimento, quando só teria direito ao rendimento básico quem auferisse um determinado vencimento mensal. Argumentos clássicos a favor da introdução desta ideia são os empregos que entretanto desapareceram com a emergência das novas tecnologias, os elevados custos administrativos com que se debatem as instituições sociais e a cada vez menor confiança do cidadão no Estado. Contudo, os contra-argumentos não são de menor peso: um rendimento básico para todos significaria a ruína do orçamento geral do Estado e acarretaria consigo o perigo do chamado “paraíso social”, podendo resultar no facto de todos deixarem de trabalhar. Para além disso, muitas outras questões continuam em aberto: que incentivos adicionais seriam atribuídos a pessoas com necessidades especiais ou a pessoas com limitações físicas, ou até a pais e mães solteiros?  Que mudanças poderia o rendimento básico incondicional trazer para a noção de cidadania? As crianças deveriam receber o mesmo montante que recebem os adultos? Em caso afirmativo, até que idade deveriam os pais decidir o que fazer com o dinheiro? E que sucederia na nossa sociedade, quando já ninguém quisesse conduzir autocarros ou limpar casas de banho públicas?

Michael Bohmeyer fundou a associação "Mein Grundeinkommen". Michael Bohmeyer fundou a associação "Mein Grundeinkommen". | © Fabian Melber Michael Bohmeyer está perfeitamente consciente de tudo isto. A associação “O meu rendimento básico” foi fundada há oito anos por este berlinense. Os fundos para o projeto eram angariados mediante financiamento coletivo (crowdfunding). Sempre que a associação conseguia reunir 12.000 Euros, sorteava o dinheiro por um dos candidatos registados. A associação conseguiu reunir, ao longo do tempo, mais de 200.000 donativos que financiaram mais de mil rendimentos básicos. Muitos dos contemplados com o rendimento básico fizeram saber a Bohmeyer que o dinheiro tinha, de facto, transformado a sua vida e aliviado a pressão, outros desclassificaram a iniciativa, dizendo que se tratava de um “facto anedótico” sem relevância empírica. Foi esta a razão que levou a associação a iniciar o estudo complementar intitulado “Projeto piloto rendimento básico”, no qual participa Lisa Buchenauer. O estudo é levado a cabo, de forma independente, pelo Instituto Alemão para os Estudos Económicos e por investigadores da Universidade de Colónia e da Faculdade de Economia de Viena. A fim de determinar que impacto tem, de facto, a remuneração mensal na vida dos candidatos, Lisa Buchenauer e mais de mil participantes de um grupo devidamente supervisionado respondem a seis inquéritos ao longo dos três anos em estudo. Para além dos inquéritos, são aplicados métodos complementares que procuram verificar de que forma o comportamento dos candidatos se transforma e de que forma evolui o seu bem-estar, utilizando, a título de exemplo, análises ao cabelo, a fim de avaliar os níveis de stress, ou a avaliação de dados de mobilidade. É deste modo que Bohmeyer e os investigadores envolvidos no estudo pretendem demonstrar empiricamente os efeitos e as implicações do rendimento básico.

É como se o RBI suprimisse o medo existencial e melhorasse a qualidade do trabalho.

Michael Bohmeyer


Lisa Buchenauer já está em condições de explicar de que modo o rendimento básico transformou a sua vida. “Se a minha máquina de lavar roupa se avariasse, não saberia como resolver o problema até há um ano atrás. Um doutorando não ganha propriamente uma fortuna e não está em condições de fazer poupanças”, observa a investigadora em nutrição. Lisa goza de maior segurança, tem, pela primeira vez na vida, um fundo de reserva, e sente-se feliz por não ter de preocupar-se com a inflação atual. No entanto, algum tempo decorrerá ainda até que os dados de Lisa e dos outros participantes sejam contabilizados no estudo em causa. Os primeiros resultados serão apresentados no verão de 2022, ainda que esta fase do estudo só termine em 2024. O projeto piloto terá, porém, continuidade após essa data. A associação pretende fazer estudos experimentais com montantes e tributações diversificados, aplicados a grupos de maior dimensão e de constituição também ela diversificada.

Graças ao Rendimento Básico, a doutoranda Lisa Buchenauer tem pela primeira vez um fundo de reserva e sente-se mais segura. Graças ao Rendimento Básico, a doutoranda Lisa Buchenauer tem pela primeira vez um fundo de reserva e sente-se mais segura. | © Sebastian Wiedling / UFZ O estudo experimental de Berlim não é, de modo algum, pioneiro na questão do rendimento básico. Antes dele, já mais de uma dúzia de estudos haviam sido levados a efeito, entre eles, um estudo famoso realizado nos Estados Unidos da América nos anos setenta, cujo impacto foi analisado, sob diferentes perspetivas, ao longo dessa década. Mas foi sobretudo na Finlândia que um estudo fez furor quando, entre 2016 e 2018, os desempregados deixaram de descontar os rendimentos adicionais do seu subsídio de desemprego, o que correspondia a uma simulação do rendimento básico incondicional diretamente no vencimento. No Quénia, por outro lado, vários milhares de indivíduos recebem atualmente uma remuneração de subsistência através de uma organização americana chamada “Give directly”, sendo, também eles, alvo de inquéritos e de supervisão regulares.

Impacto na taxa de divórcio e na saúde mental

O investigador Osterkamp tem uma opinião cética em relação a muitos dos estudos experimentais realizados até ao momento. Considera, por exemplo, que 122 participantes no estudo de Berlim é um número “extraordinariamente diminuto”, ainda que tal situação se prenda com os custos associados ao projeto. Quanto a outros estudos, critica, por exemplo, o público-alvo a que se dirigem, nomeadamente, no caso do projeto finlandês, que este se tenha circunscrito ao grupo dos desempregados. “Do ponto de vista científico, só reconheço, de facto, verdadeira qualidade a dois dos estudos realizados até ao momento. Os grandes estudos realizados nos Estados Unidos da América, há quatro décadas, foram conduzidos de forma muito sistemática, acompanhados cientificamente por várias universidades e contaram com uma amostragem significativa. O estudo que decorre atualmente no Quénia também parece promissor, porquanto tem a vantagem de se estender por um prazo alargado no tempo e englobar um grande número de participantes”, explica. Muitas das experiências apresentaram resultados deveras curiosos: aquando do estudo americano, a taxa de divórcios aumentou e, na Finlândia, a saúde mental das pessoas melhorou. Os primeiros resultados do projeto de Berlim serão conhecidos apenas no próximo ano. Bohmeyer adianta, no entanto: “Em nenhum projeto piloto de RBI levado a cabo a nível mundial se notam sinais de uma diminuição do tempo de trabalho. E também não esperamos encontrar esse impacto no nosso projeto piloto.” Bohmeyer pôde constatar nos últimos anos que a vida dos sorteados com o rendimento básico incondicional “se transformou significativamente, sem que tal resultasse em indolência ou inação. Pelo contrário: as pessoas tornam-se mais produtivas. Algumas mudam de emprego porque, sentindo-se mais seguras com o RBI, podem procurar a ocupação que verdadeiramente se adequa à sua personalidade. É como se o RBI suprimisse o medo existencial e melhorasse a qualidade do trabalho”, acrescenta Bohmeyer.

Osterkamp oferece uma explicação bastante simples para o facto de nenhum país ter adotado, até ao momento, o rendimento básico incondicional, não obstante o grande número de estudos experimentais e resultados conhecidos: “Nenhuma experiência levada a cabo pode realmente oferecer respostas definitivas acerca das eventuais transformações comportamentais que o rendimento básico poderia provocar.” Por um lado, a mudança de paradigma causada pela adoção do rendimento básico pode assumir uma amplitude tal que nenhum estudo experimental seria capaz de simular, porquanto qualquer experiência está sempre circunscrita a um determinado período de tempo e a um público-alvo. É difícil de prever, de um ponto de vista científico, de que modo os salários, a motivação profissional e o clima social se transformariam, quando o vizinho, a professora e até a empregada doméstica começassem a receber o rendimento básico. As mesmas incertezas se podem constatar nas palavras de Lisa Buchenauer acerca da experiência por que está a passar: “Tenho sempre presente que o rendimento básico irá acabar um dia, pelo que não alterei o meu nível de vida”, observa. Por outro lado, partidários e opositores do RBI acabarão sempre por tirar as conclusões que lhes convêm a partir dos resultados alcançados, mesmo nos casos dos estudos mais importantes. Foi precisamente o que sucedeu com o aumento da taxa de divórcios no caso dos estudos norte-americanos. Para os opositores, serviu de argumento para reforçar que o rendimento básico promove a “decadência moral”. Os defensores viram no mesmo resultado uma evolução positiva: como as mulheres se haviam tornado independentes dos seus maridos, do ponto de vista económico, podiam finalmente emancipar-se e ter uma vida própria.

Estaremos, então, perante uma empresa inútil ao conduzir este tipo de estudos e ao debater o tema do rendimento básico? Osterkamp não tem essa opinião, defendendo que o debate do tema tem produzido bons resultados ao longo dos anos. O grande passo dado ultimamente nessa direção foi a chamada “remuneração do cidadão” (Bürgergeld), uma noção que teve, de resto, a sua origem no debate em torno do rendimento básico, prevista pelo atual governo alemão para substituir o subsídio de desemprego (“Hartz IV”) e tornar todo o processo mais fácil. “Trata-se de um passo dado no sentido do rendimento básico, sem querer dar-lhe esse nome”, observa Osterkamp. Lisa Buchenauer também não se encontra em condições de avaliar se o rendimento básico será, a longo prazo, uma verdadeira solução para os problemas económicos e sociais da atualidade. Não se considera uma defensora explícita da ideia, apesar de usufruir deste rendimento há um ano: “Na minha opinião, seria necessária uma mudança radical do sistema social, tal como o conhecemos.” Necessária seria igualmente, a seu ver, uma investigação mais vasta em torno deste tema, para a qual ela já dá, de resto, o seu contributo.