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Eva von Redecker e Ulrike Guérot à conversa
A revolução feminina

As mulheres são uma força motriz no desenvolvimento de alternativas ao nosso sistema económico desumano. Também no âmbito da digitalização poderão as influências feministas desempenhar um papel de importância central.

Este texto foi publicado originalmente como parte integrante da série «Kapitalismus hacken» [Fazer hacking ao capitalismo] da edição 02/21 da revista enorm.

De Anja Dilk

Por esse mundo fora ergue-se a resistência contra o poder destruidor do sistema económico. E essa revolução é instigada sobretudo por mulheres. Estas mobilizam e desenvolvem utopias de uma vida diferente. Um encontro filosófico entre Eva von Redecker e Ulrike Guérot.

Enorm Magazin: O tempo das utopias já se esgotou?

Eva von Redecker: Não, de todo. Se bem que as utopias que se limitam a fazer simples promessas, essas encontram-se desacreditadas. E com razão. Desenhar uma imagem de um futuro melhor e alegar que bastaria dar um salto e eis que já lá estaríamos, nesse outro futuro, é coisa que simplesmente não funciona. Por esse motivo, prefiro falar de espaços intermédios que apontam nessa direção. E com isto, refiro-me concretamente a momentos que sejam tornados realidade e a práticas que consigam gerar a adesão das pessoas. É disso que temos de ir à procura. A pressão no sentido da mudança é enorme. Hoje em dia, em comparação a trinta anos atrás, há muito mais pessoas que pensam que deveríamos, o quanto antes, abandonar as nossas atuais formas de vida.

De acordo com o «Trust Barometer» («barómetro de confiança») de uma empresa de relações públicas dos EUA, 55 por cento dos alemães são da opinião que, na sua forma atual, o capitalismo prejudica mais do que ajuda.

Ulrike Guérot: Uma sociedade que não produza quaisquer utopias irá perecer. Tal como os viajantes que erram no deserto, precisamos de uma estrela no firmamento, uma bússola que nos indique o caminho a seguir. Quem partir para o deserto sem levar uma bússola, fiando-se no lema «importa é ser pragmático», acabará, ao fim de um dia, a regressar exatamente onde iniciou. Atualmente, olhamos em redor e tudo o que vemos são distopias, os grandes projetos sociais parecem estar arrumados a um canto. O cristianismo — ou, pelo menos, a Igreja —, a Revolução Francesa, o marxismo científico ou o socialismo, nenhuma dessas noções desperta hoje em dia quaisquer nostalgia. A literatura, o cinema e a ficção científica oferecem sobretudo imagens de uma terra completamente poluída e de apenas um punhado de pessoas que conseguem salvar-se a si mesmas. Ao atingirem o nosso sistema nervoso, esse impulsos despertam o desejo de utopia.
 

Sobre as entrevistadas

  As utopias alteram seja o que for?

Guérot: Claro que sim. 1789 foi um momento utópico. «Os homens nascem e são livres e iguais em direitos» — nos tempos do «Rei Sol», tal afirmação constituía ainda uma perfeita utopia. De um momento para o outro, os súbditos transformam-se em cidadãos, agarram nas suas forquilhas e impõem essa mudança. Desde então isso passou a constituir um direito humano consagrado nas constituições. Ou pense-se, por exemplo, na luta das sufragistas, pelo direito de voto das mulheres. Atualmente já nem conseguimos imaginar o quanto isso era, na altura, considerado utópico. E em 1918 foi simplesmente introduzido.

Redecker: Para mim, a utopia é mais do que um valor orientador para o futuro. Deveria desenvolver uma visão pormenorizada e aliciante de como a vida poderia ser. Deveria ser antes a noção de uma terra da abundância, mais do que de «liberdade, igualdade, fraternidade». Além disso, acho também que, retrospetivamente, as ideias parecem com frequência mais poderosas e eficazes do que na verdade eram. Na Revolução Francesa, é provável que muitas coincidências inteiramente não utópicas tenham ajudado a que as ideias se manifestassem. A campanha de ódio contra Maria Antonieta, por exemplo, deverá ter sido muito mais poderosa nos seus efeitos do que as novas noções de direitos humanos de um pequeno grupo de juristas. Mesmo nos chamados «Cadernos de Queixas» (Cahiers de Doléances) que foram disponibilizados por toda a França no início da revolução, existem apenas exigências bastante moderadas, sobretudo relacionadas com o quotidiano. Aí nada há de utópico. Revolucionário foi antes o modo como as pessoas se reuniram em assembleias. O facto de, subitamente, elas se terem reunido e de lhes ter sido pedida a sua opinião prenunciou a soberania popular.

Guérot: E é por isso que se vive agora um momento quase revolucionário, numa altura em que, pela Europa fora, se está a realizar uma grande consulta aos cidadãos a respeito do futuro da Europa. Por todo o lado, Europa afora, estão a ser organizados fóruns, a ser realizadas discussões dedicadas ao tema «Como imagina o futuro da UE?» Também agora deverão as exigências ser bastante modestas. O momento revolucionário consiste na própria consulta. Talvez resulte daí uma Europa completamente diferente, talvez se consiga quebrar o domínio do Conselho Europeu (Nota da redação: o grémio dos chefes de Estado e de Governo da UE). Talvez se consiga finalmente caminhar rumo a uma república europeia, uma democracia orientada para o bem comum, com direitos iguais para os bens, a moeda e os cidadãos? Com efeito, consoante o modo como for conduzida a consulta aos cidadãos e como a sociedade civil venha a envolver-se, pode bem ser que um génio se liberte da garrafa e assuma uma vida própria.

Nesta publicação temos uma série de textos dedicados à questão de fazer hacking ao capitalismo. Será isto uma utopia ou trata-se antes de um processo a que já se deu início?

Redecker: Estamos, pelo menos, numa fase inicial mas bastante promissora. Observo aspetos substancialmente novos nos movimentos sociais que se estão a agregar e ganhar forças para se revoltarem contra a destruição da vida e contrariarem as dinâmicas de aproveitamento e exploração dos recursos. Esses movimentos têm em comum uma compreensão solidária e livre de uma vida em comunidade, em que as pessoas cuidam mutuamente umas das outras. Por conseguinte, o nome que dou a estes movimentos é «Revolução pela Vida».

Nesses movimentos o que é ao certo que possui um potencial novo e explosivo?

Redecker: Quando Ruth Wilson Gilmore, uma das mentoras do movimento Black Lives Matter, diz «freedom is a place», está a fazer referência a uma nova utopia. Quando utiliza o termo «abolition» não está apenas a falar da supressão das prisões e da Polícia, mas também do desenvolvimento de estruturas sociais de educação, de justiça e equidade, de acesso a um sustento material. Por todo o mundo existem grupos que se revoltam contra o domínio material do capitalismo: desde as feministas argentinas do movimento Ni Una Menos até aos movimentos indígenas. Não se limitam a protestar; em vez disso regem-se, por antecipação, por determinados princípios, por uma forma solidária de convivência, de trabalho, de utilização dos recursos. Há também o caso dos e das ativistas do movimento Ende Gelände, [que pratica a desobediência civil e ocupa minas de carvão e] que propõe que, em vez de se explorar os recursos, estes poderão ser partilhados, ou simplesmente deixados na terra. Quando todos estes movimentos acorrerem aos pequenos espaços intermédios, aí se encontrarem e a sua ação culminar, poderá resultar daí uma revolução que abranja todos os aspetos da vida.

Guérot: Assisto também a muita discussão no meio académico e no seio da própria sociedade civil sobre o decrescimento (degrowth), sobre o conceito de commons, o capitalismo realmente existente, a mudança de sistema, os movimentos sociais. É um livro a seguir ao outro. Reboot the system. Encarar a crise como uma oportunidade. Contudo, a minha visão raio-X da realidade mostra-me que o que aqui está a acontecer é exatamente o oposto.

Em que medida?

Guérot: Por causa da pandemia, está-se pela primeira vez desde há décadas a desativar os travões ao endividamento, está-se a usar esse dinheiro para pagar o layoff – entretanto, a BMW e a Daimler estão a distribuir dividendos. Sobre o quinto inferior da população paira a ameaça de uma catástrofe educativa de proporções gigantescas — entretanto, a bolsa de valores está a florescer. As pessoas deixam de conseguir suportar os custos da habitação porque perderam os seus empregos — em Berlim, porém, estão novamente a ser vendidos 4000 apartamentos a um hedge fund. As ideias existem, mas o espaço intelectual e os anseios da população por um sistema mais democrático e mais social parecem completamente desligados da realidade. Neste momento, não sei quem está a fazer hacking a quem: somos nós a fazer hacking ao sistema ou é o sistema a fazê-lo a nós? E estamos todos metidos nisto.

Redecker: Infelizmente, não existe um botão que se possa premir para desligar uma tal lógica de um sistema que assume vida própria. Temos de mobilizar as pessoas e, com tanto mais urgência, procurar novos mecanismos funcionais ao nível do sistema. Não basta constatar: «Neste momento, as coisas não estão a correr bem.» É preciso, em vez disso, questionar: «Como vamos então organizar o mercado imobiliário de Berlim de forma diferente?»

E o que propõem?

Guérot: Propostas para o mercado imobiliário não tenho nenhuma, mas poderia contribuir com uma frase de Hannah Arendt: «A acumulação de capital conduz à acumulação de poder, que, por sua vez, conduz à guerra.» Antes cruzávamos fronteiras para travar a guerra, mas hoje em dia envolvemo-nos tendencialmente em guerras civis. A noção da guerra civil está em voga na teoria política: expressão disso é, por exemplo, o assalto ao Congresso dos EUA, os protestos dos «coletes amarelos», os protestos da população negra. A que se deve isso? Em primeiro lugar: à acumulação de riqueza. Em segundo lugar: à acumulação de dados. Os gigantes da tecnologia fazem dinheiro a partir dos dados. Há que pôr fim a isso, pois a acumulação de dados tem como consequência uma acumulação de capital, que a dada altura é bem provável que venha a transformar-se num impenetrável entrançado, acabando necessariamente por conduzir a uma qualquer nova forma de guerra: quem dispuser de dinheiro e dados, pode controlar os outros e, ao anular a sua perspetiva de ver as coisas, bani-los do espaço político.

Como poderemos escapar-nos a isso?

Guérot: Aprendendo, por exemplo, com o filósofo francês Thomas Piketty. Em Capital e Ideologia, ele apela a uma consistente redistribuição do dinheiro, propondo, por exemplo, uma ajuda de 125 mil euros para os jovens estudantes na UE começarem as suas vidas. Precisamos que o imposto sucessório seja de pelo menos 50 por cento. Seis por cento das crianças alemãs herdarão ao longo dos próximos dez anos cerca de 60 por cento da riqueza nacional da Alemanha. Encontramo-nos a meio de um processo de refeudalização, a que o mundo jamais assistiu.

Redecker: As propostas de Piketty visam os excessos, mas não afetam propriamente o núcleo do modelo de criação de valor, da orientação para o lucro. Temos de desobstruir a carga ideológica do nosso conceito de propriedade e libertar-nos do jugo daquilo a que chamo o «domínio material absoluto». O facto de se ser proprietário de qualquer coisa não pode significar que se tem permissão de destruí-la — sobretudo quando isso faz parte das condições para a nossa subsistência global. A minha utopia é uma comunidade de pessoas que partilham, ao invés de uma sociedade em que os indivíduos se definem através do domínio e da propriedade. Não podemos simplesmente ficar a assistir ao modo como os mercados falham na sua tarefa de produzir bens sem, ao mesmo tempo, estarem a contribuir para a destruição do mundo, ou à forma pouco equitativa como a distribuição desses bens é realizada. Para ser viável, uma utopia deve, pelo menos em muitos setores da economia, substituir uma produção orientada para a criação de valor por uma produção orientada para as necessidades...

Ou seja, desenvolver alternativas ao mercado…

Redecker: Sim, mediante a nacionalização, isto é, a reversão de privatizações, por exemplo no setor dos transportes. Precisamos de novos modelos de transporte de mercadorias, mas também de estruturas que se organizem por si mesmas para lá do planeamento estatal, o que já começou por acontecer com a criação de bolsas de intercâmbio e partilha. As grande empresas tecnológicas já estão a detetar e compreender as nossas necessidades e, sem nos darmos conta disso, adquirem este valioso conhecimento ao desbarato. Para mim, fazer hacking ao capitalismo significa obter dele os dados e aproveitá-los para uma auto-organização solidária da sociedade. Não temos de voltar atrás com a digitalização, mas antes de expropriar os capitalistas dos dados.

Guérot: E, nesse sentido, as mulheres poderiam desempenhar um papel de importância central. A cena das hackers feministas está neste momento a ganhar bastante destaque. Na Internet, surge por todo o lado uma T-shirt das «feiticeiras tecnológicas» com a inscrição «5D-femmes». Já não é com tanta facilidade assim que as mulheres se deixam convencer pela digitalização. A guerra dos dados é também uma guerra de géneros. Quem é que decide como as coisas avançam no que toca à digitalização e à inteligência artificial (IA)? Creio, de facto, que sobretudo por detrás da IA se esconde uma estratégia masculina, afim da tecnologia, para a restauração do patriarcado, sob as condições da digitalização. Precisamente por as mulheres se terem emancipado, por se imporem nos conselhos de administração, por exigirem salários iguais, os homens precisam agora de alguém que lhes encha o frigorífico, e para isso foi criada a Alexa.

Também o debate sobre modelos alternativos de sociedade está a ser conduzido sobretudo por mulheres, como é o caso de Mariana Mazzucato (economia de missão), Kate Raworth (economia donut), Alexandria Ocasio-Cortez (justiça climática). Porquê?

Redecker: Pela primeira vez na história mundial, trata-se finalmente de uma coincidência. Graças aos sucessos parciais da emancipação, nem todas as mulheres continuam, de modo sistemático, a ser mantidas fora da esfera pública. Mesmo anteriormente, as mulheres desempenharam papéis importantes na história das revoluções, mas assim que qualquer revolução criou verdadeiras opções de poder, as mulheres foram postas de lado e, com elas, também a memória da sua participação ativa. Por outro lado, não é de todo uma coincidência, pois a atual crise que afeta a nossa sociedade tem essencialmente a ver com questões que, desde há séculos, têm sido atribuídas às mulheres: a prestação de cuidados, a solidariedade, um sentido de comunidade que funcione, sem este devastador nível de exaustão a que atualmente estamos sujeitos. O sistema económico capitalista está neste momento a fracassar nesses campos. Um projeto de revolução que não tenha qualquer tipo de resposta para a questão da prestação de cuidados deixará portanto de ser atrativo. É por isso que as ideias têm cada vez mais uma marca feminina...

Assim como as novas formas de protesto.

Redecker: Sim, as mulheres estão frequentemente na vanguarda: desde Greta Thunberg, a ativista climática, até Emma Gonzalez, a ativista que defende o controlo do acesso às armas. Movimentos como o Ende Gelände dedicam nas suas atividades de protesto boa parte do tempo à prestação de cuidados a outros, de modo a que os estereótipos não acabem por ser insidiosamente reproduzidos. Nesses espaços emerge, pouco a pouco, um novo entendimento do poder e da ação, vão surgindo novos padrões quotidianos. Tal acontece tanto com mulheres como com homens, mesmo com aqueles que se coloquem para lá desta alternativa. Propaga-se, de certa forma, uma verdadeira relutância em relação ao domínio. É, pois, uma oportunidade para a mudança social.