Caminhar. Embriagar-se. Andar no ritmo da sorte. A flânerie é o âmbito anárquico dentro do capitalismo.
Penso em meu corpo, em meu nome, na minha linguagem. De quem é este corpo, de quem são estas palavras? A ilusão de que uma pessoa pertence a si própria pelo simples fato de estar viva desaparece quando analisamos os meios que permitem ao ego agenciar sua singularidade: a família, a universidade, o Estado, a profissão, o amante, a sobrevivência econômica e a elaboração da própria imagem são âmbitos necessários para que o ego exista e seja reconhecido como tal.O indivíduo pronuncia-se a partir das relações que estabelece com as coletividades das quais faz parte, portanto, mesmo quando medita sobre o que há de mais próprio de si, encontra uma série de conjuntos habitados tanto por sujeitos quanto por discursos, fantasmas e modos de desejar. Em outras palavras, a primeira pessoa do singular está ligada a todas as outras. Talvez o erro seja colocá-la no topo da lista, organizá-la verticalmente na ponta como se fosse a coisa mais importante ou a que domina tudo abaixo dela.
O eu, o sujeito e seu nome próprio fazem parte de uma série de grupos e códigos que delimitam sua experiência, história e expressão: não podemos ver, sentir e dizer tudo, mas o que nosso ambiente possibilita. Quando penso no meu corpo, nas minhas sensações e na minha linguagem, coloco-os no âmbito capitalista, especificamente, na lógica da dívida como modo de vida. A dívida não apenas como uma soma de dinheiro que se pede emprestada e que, portanto, se deve; mas também e sobretudo como obrigação moral contraída com alguém.
No entanto, a dívida monetária opera a partir de um marco impessoal: “uma dívida, diferente de qualquer outro tipo de obrigação, pode ser quantificada com precisão. Isso permite que as dívidas sejam simples, frias e impessoais, o que, por sua vez, permite que elas sejam transferíveis”. A dívida codificada como uma obrigação moral parte de um eu que vivencia essa experiência específica em relação a alguém ou algo.
Com quem se endivida o eu? Talvez, em primeiro lugar, consigo mesmo. Parece que não basta respirar, estar presente, para afirmar o nosso estar na vida. O princípio da identidade nos possui, nos mantém em dívida perpétua, sustentando-se numa ordem metafísica de valor estabelecida pelo próprio âmbito capitalista: produtividade, acumulação, beleza, bem-estar, trabalho, harmonia, felicidade, cultura, juventude.
Com quem se endivida o eu? Talvez, em primeiro lugar, consigo mesmo. Parece que não basta respirar, estar presente, para afirmar o nosso estar na vida.
Em meio ao turbilhão de obrigações que temos que cumprir para sustentar nosso próprio status quo, o eu procura manter a compostura de seu rosto, mas o cansaço é visível e o inunda por completo. Ainda assim, não paramos porque estamos endividados. Somos Aquiles tentando alcançar a tartaruga tanto monetariamente quanto em termos de desejo. Pegamos emprestada uma imagem, um estilo de vida, um anseio por estabilidade, charme, completude, e agora temos que pagar por isso.
As taxas de juros são altas. A dívida não acaba. As atualizações do que o eu deve ter, fazer e possuir acontecem mais rápido do que os pagamentos para saldar a dívida. Estamos condenados a viver nela, talvez seja ela mesma a pedra angular do princípio da identidade. Por mais produtivos que sejamos, nunca será suficiente, porque o que a dívida busca é não ser saldada, é perpetuar-se, manter sua existência e seu sombrio efeito de naturalidade.
Você nasceu endividado e endividado morrerá. É como se ela nos definisse. Ela brinca conosco usando o medo como aliado: se você a cancela ou a descumpre, perde a possibilidade de continuar sendo o que é, de manter a neurose que define você. A dívida é a lei. O perigo é o banimento, o exílio da comunidade, a abjeção da vergonha, a morte. Então, nos perguntamos: o que pode fazer o indivíduo diante de seu próprio ambiente? Ele está condenado a sustentá-lo infinitamente?
Aparentemente, não há saída possível. No entanto, se renunciarmos a uma mudança total, podemos vislumbrar uma possibilidade de fuga. Apostando não na transformação absoluta, mas no intervalo entre ela e sua suspensão: interromper a dívida. Se o ego coloca seu princípio de identidade e seu individualismo em segundo plano para se concentrar no ambiente, o que aparece é uma série de relações que o envolvem. O eu vinculado é o umbral que conduz à interrupção.
Interromper a dívida é introduzir em seu centro um marasmo que atenua sua afirmação contínua. Pausar o processo de identificação do eu consigo mesmo para que ele reconheça as forças e os espaços anárquicos dentro do próprio capitalismo. Mais do que um desejo emancipatório – não mais heróis, por favor! – a interrupção busca uma desconexão parcial dos propósitos do eu por meio de ações concretas, vagas e sutis. Experiências imperceptíveis aos olhos do capital, mas contundentes para o eu que se conecta com o improdutivo, onde o nome próprio libera o prestígio e a autoafirmação em favor da surpresa, do movimento e do contato.
Em meio ao turbilhão de obrigações que temos que cumprir para sustentar nosso próprio status quo, o eu procura manter a compostura de seu rosto, mas o cansaço é visível e o inunda por completo.
Uma estratégia de interrupção do eu endividado é levá-lo para passear. Embora a quietude seja frequentemente associada à imobilidade, também é possível encontrá-la no fluxo, na vibração, na oscilação e no deslocamento. No passeio, a quietude embriaga o eu, colocando-o em contato com um andar que não pede nada em troca e diante do qual não é necessário realizar uma ação específica. Caminhar por caminhar e nada mais, colocando-se à mercê dos encontros. Perdendo-se até parar de pensar que se está perdido. Walter Benjamin, Louis Aragon, Charles Baudelaire e vários outros chamaram essa estratégia de interrupção de flânerie.
O caminhante anda pela mesma cidade que o eu endividado. As mesmas ruas e espaços contêm as duas experiências. A diferença é que o flâneur vagueia e o mundo não lhe aparece como mercadoria. Ele não quer comprar nada, muito menos a si mesmo. Não há transação no devir. A afirmação e a negação são inoperantes. O valor dissolve-se diante da perda de qualquer parâmetro metafísico que o sustente. O flâneur destitui momentaneamente o eu, sem lhe pedir que renuncie a nada. Não há reivindicação, há trânsito.
Em Passagens, Benjamin distingue dois tipos de homens, que compõem a dialética do flâneur. De um lado, há “aquele que se sente olhado por tudo e por todos, enfim, o suspeito”, enquanto do outro há “o absolutamente insondável, escondido”. O insondável é o flâneur que interrompe o suspeito, o endividado, para permitir que ele viva uma mudança de ritmo, uma ruptura com os olhares e as exigências que não param de espreitar. Desnecessário dizer que ambos vivem no mesmo corpo.
Para o flâneur, a rua não é uma imagem, muito menos uma superfície, mas um limiar que desvia o olhar dos inúmeros elementos da paisagem, para transformá-la em pele que caminha pelos estratos em estado de embriaguez semelhante à infância, onde a estranheza não busca ser resolvida. Para Benjamin: “Uma embriaguez toma conta de quem, sem destino, vagou por longo tempo pelas ruas. Sua marcha ganha a cada passo uma violência crescente. A tentação de lojas, bares e mulheres sorridentes diminui cada vez mais, tornando-se irresistível o magnetismo da esquina seguinte”.
O corpo se move e, no entanto, está quieto. A quietude é a interrupção da dívida. O corpo, o sujeito, o eu e o nome próprio deixam de se conjugar no presente ou no passado.
Se o eu é um estado, a embriaguez é seu veneno. Portanto, mais do que falar de flâneur como substantivo, vamos refletir na flânerie como ação. Uma prática que interrompe a dívida, introduzindo o marasmo no corpo inteiro do eu; possibilidade de quietude diante da demanda de produtividade do capitalismo.
Andar. Embriagar-se. Andar ao ritmo da sorte. A flânerie é o âmbito anárquico dentro do âmbito capitalista, é a destituição do indivíduo a partir do múltiplo. A dissolução do rosto e da identificação no ritmo dos passos. Espaço transformado em meio afetivo. O ocularcentrismo desaparece diante da inutilidade da classificação. Não há necessidade de reconhecimento, de presença para si e para os outros. Não há outros, há vínculos, correspondências, sistemas simpoiéticos, uniões e fluxos. Ninguém quer possuir ou ser possuído. Não podemos nem falar de amor, porque não há lógica de propriedade privada. O silêncio de quem caminha interrompe a vida como mercadoria.
O corpo se move e, no entanto, está quieto. A quietude é a interrupção da dívida. O corpo, o sujeito, o eu e o nome próprio deixam de se conjugar no presente ou no passado. São conjuntos, constelações, em meio ao fluxo da própria vida. Aqui, não há história ou arquivo. Se o fantasma aparecer, é só para dançar um pouco.
Tudo está sem solução: a peculiar indecisão do flâneur. “Assim como aguardar é o estado próprio do contemplativo imóvel, parece que duvidar é próprio do flâneur. Numa elegia de Schiller lê-se: ‘A asa indecisa da borboleta’. Aqui se apresenta a mesma relação de impulsividade e sentimento de dúvida que caracteriza a embriaguez do haxixe.” Em meio a essa experiência, onde fica a rua? Não é mais só cimento debaixo dos pés.
Se a flânerie é um modo de interrupção do eu endividado, nem mesmo a rua é necessária, ela pode ser praticada mesmo quando se está sentado. Por exemplo, quando você lê um livro por ler e não para cumprir uma obrigação acadêmica ou cultural. Ao rir às gargalhadas com um amigo, porque amizade é alguma coisa, é relacionamento sem dívidas. Também a flânerie no cinema: às vezes, ao assistir a um filme, acontece uma experiência em que se está dentro daquele filme, diminuindo a distância entre o objeto e o sujeito. Há momentos em que ver filmes é ser cinema. Ou quando a razão deixa de suturar e ordenar a vida de acordo com a ordem da dívida capitalista.
Finalmente, pensar na flânerie não como personalidade mas como prática vital nos permite iniciá-la conscientemente quando é necessário ou urgente. Renunciar a ser flâneurs e flâneuses em tempo integral. Treiná-la e embriagar de quietude o reino da vida produtiva. Praticá-la para interromper a dívida do eu; voltar a ela por desejá-la.
- David Graeber, Schulden. Die ersten 5000 Jahre. 1. Auflage. Klett-Cotta Verlag, Stuttgart 2012, S. 19.
- Walter Benjamin, „Der Flaneur“, zitiert nach den Gesammelten Schriften Walter Benjamins, Herausgegeben von Rolf Tiedemann. Band V, Frankfurt am Main, 1991. S. 529, 535, 536, 1053.
Este artigo foi publicado originalmente no livro Blickwinkel: marasmus, editado pelo Goethe-Institut México e pela Pitzilein Books.