Possibilidade de quietude  Flânerie: interrupção da dívida como modo de vida

Flânerie © Ilustração: Liz Mevill

Caminhar. Embriagar-se. Andar no ritmo da sorte. A flânerie é o âmbito anárquico dentro do capitalismo.

Penso em meu corpo, em meu nome, na minha linguagem. De quem é este corpo, de quem são estas palavras? A ilusão de que uma pessoa pertence a si própria pelo simples fato de estar viva desaparece quando analisamos os meios que permitem ao ego agenciar sua singularidade: a família, a universidade, o Estado, a profissão, o amante, a sobrevivência econômica e a elaboração da própria imagem são âmbitos necessários para que o ego exista e seja reconhecido como tal.

O indivíduo pronuncia-se a partir das relações que estabelece com as coletividades das quais faz parte, portanto, mesmo quando medita sobre o que há de mais próprio de si, encontra uma série de conjuntos habitados tanto por sujeitos quanto por discursos, fantasmas e modos de desejar. Em outras palavras, a primeira pessoa do singular está ligada a todas as outras. Talvez o erro seja colocá-la no topo da lista, organizá-la verticalmente na ponta como se fosse a coisa mais importante ou a que domina tudo abaixo dela.

O eu, o sujeito e seu nome próprio fazem parte de uma série de grupos e códigos que delimitam sua experiência, história e expressão: não podemos ver, sentir e dizer tudo, mas o que nosso ambiente possibilita. Quando penso no meu corpo, nas minhas sensações e na minha linguagem, coloco-os no âmbito capitalista, especificamente, na lógica da dívida como modo de vida. A dívida não apenas como uma soma de dinheiro que se pede emprestada e que, portanto, se deve; mas também e sobretudo como obrigação moral contraída com alguém.

No entanto, a dívida monetária opera a partir de um marco impessoal: “uma dívida, diferente de qualquer outro tipo de obrigação, pode ser quantificada com precisão. Isso permite que as dívidas sejam simples, frias e impessoais, o que, por sua vez, permite que elas sejam transferíveis”. A dívida codificada como uma obrigação moral parte de um eu que vivencia essa experiência específica em relação a alguém ou algo.

Com quem se endivida o eu? Talvez, em primeiro lugar, consigo mesmo. Parece que não basta respirar, estar presente, para afirmar o nosso estar na vida. O princípio da identidade nos possui, nos mantém em dívida perpétua, sustentando-se numa ordem metafísica de valor estabelecida pelo próprio âmbito capitalista: produtividade, acumulação, beleza, bem-estar, trabalho, harmonia, felicidade, cultura, juventude.

Com quem se endivida o eu? Talvez, em primeiro lugar, consigo mesmo. Parece que não basta respirar, estar presente, para afirmar o nosso estar na vida.


Em meio ao turbilhão de obrigações que temos que cumprir para sustentar nosso próprio status quo, o eu procura manter a compostura de seu rosto, mas o cansaço é visível e o inunda por completo. Ainda assim, não paramos porque estamos endividados. Somos Aquiles tentando alcançar a tartaruga tanto monetariamente quanto em termos de desejo. Pegamos emprestada uma imagem, um estilo de vida, um anseio por estabilidade, charme, completude, e agora temos que pagar por isso.

As taxas de juros são altas. A dívida não acaba. As atualizações do que o eu deve ter, fazer e possuir acontecem mais rápido do que os pagamentos para saldar a dívida. Estamos condenados a viver nela, talvez seja ela mesma a pedra angular do princípio da identidade. Por mais produtivos que sejamos, nunca será suficiente, porque o que a dívida busca é não ser saldada, é  perpetuar-se, manter sua existência e seu sombrio efeito de naturalidade.

Você nasceu endividado e endividado morrerá. É como se ela nos definisse. Ela brinca conosco usando o medo como aliado: se você a cancela ou a descumpre, perde a possibilidade de continuar sendo o que é, de manter a neurose que define você. A dívida é a lei. O perigo é o banimento, o exílio da comunidade, a abjeção da vergonha, a morte. Então, nos perguntamos: o que pode fazer o indivíduo diante de seu próprio ambiente? Ele está condenado a sustentá-lo infinitamente?

Aparentemente, não há saída possível. No entanto, se renunciarmos a uma mudança total, podemos vislumbrar uma possibilidade de fuga. Apostando não na transformação absoluta, mas no intervalo entre ela e sua suspensão: interromper a dívida. Se o ego coloca seu princípio de identidade e seu individualismo em segundo plano para se concentrar no ambiente, o que aparece é uma série de relações que o envolvem. O eu vinculado é o umbral que conduz à interrupção.

Interromper a dívida é introduzir em seu centro um marasmo que atenua sua afirmação contínua. Pausar o processo de identificação do eu consigo mesmo para que ele reconheça as forças e os espaços anárquicos dentro do próprio capitalismo. Mais do que um desejo emancipatório – não mais heróis, por favor! – a interrupção busca uma desconexão parcial dos propósitos do eu por meio de ações concretas, vagas e sutis. Experiências imperceptíveis aos olhos do capital, mas contundentes para o eu que se conecta com o improdutivo, onde o nome próprio libera o prestígio e a autoafirmação em favor da surpresa, do movimento e do contato.

Em meio ao turbilhão de obrigações que temos que cumprir para sustentar nosso próprio status quo, o eu procura manter a compostura de seu rosto, mas o cansaço é visível e o inunda por completo.

Tentar elencar passos para a interrupção da dívida no sistema capitalista seria cair na armadilha que reticula, classifica e coordena a vida. A interrupção que o eu pratica sobre sua dívida ocorre em relação ao ambiente, mas também ao trânsito de intensidades particulares que atravessam seu corpo. Não há regra ou momento preciso para a ruptura, embora existam estratégias compartilhadas, que, claro, estão sempre em risco de reabsorção e captura pelo capital.


Uma estratégia de interrupção  do eu endividado é levá-lo para passear. Embora a quietude seja frequentemente associada à imobilidade,  também é possível encontrá-la no fluxo, na vibração, na oscilação e no deslocamento. No passeio, a quietude embriaga o eu, colocando-o em contato com um andar que não pede nada em troca e diante do qual não é necessário realizar uma ação específica. Caminhar por caminhar e nada mais, colocando-se à mercê dos encontros. Perdendo-se até parar de pensar que se está perdido. Walter Benjamin, Louis Aragon, Charles Baudelaire e vários outros chamaram essa estratégia de interrupção de flânerie.

O caminhante anda pela mesma cidade que o eu endividado. As mesmas ruas e espaços contêm as duas experiências. A diferença é que o flâneur vagueia e o mundo não lhe aparece como mercadoria. Ele não quer comprar nada, muito menos a si mesmo. Não há transação no devir. A afirmação e a negação são inoperantes. O valor dissolve-se diante da perda de qualquer parâmetro metafísico que o sustente. O flâneur destitui momentaneamente o eu, sem lhe pedir que renuncie a nada. Não há reivindicação, há trânsito.

Em Passagens, Benjamin distingue dois tipos de homens, que compõem a dialética do flâneur. De um lado, há “aquele que se sente olhado por tudo e por todos, enfim, o suspeito”, enquanto do outro há “o absolutamente insondável, escondido”. O insondável é o flâneur que interrompe o suspeito, o endividado, para permitir que ele viva uma mudança de ritmo, uma ruptura com os olhares e as exigências que não param de espreitar. Desnecessário dizer que ambos vivem no mesmo corpo.

Para o flâneur, a rua não é uma imagem, muito menos uma superfície, mas um limiar que desvia o olhar dos inúmeros elementos da paisagem, para transformá-la em pele que caminha pelos estratos em estado de embriaguez semelhante à infância, onde a estranheza não busca ser resolvida. Para Benjamin: “Uma embriaguez toma conta de quem, sem destino, vagou por longo tempo pelas ruas. Sua marcha ganha a cada passo uma violência crescente. A tentação de lojas, bares e mulheres sorridentes diminui cada vez mais, tornando-se irresistível o magnetismo da esquina seguinte”.

O corpo se move e, no entanto, está quieto. A quietude é a interrupção da dívida. O corpo, o sujeito, o eu e o nome próprio deixam de se conjugar no presente ou no passado.


Se o eu é um estado, a embriaguez é seu veneno. Portanto, mais do que falar de flâneur como substantivo, vamos refletir na flânerie como ação. Uma prática que interrompe a dívida, introduzindo o marasmo no corpo inteiro do eu; possibilidade de quietude diante da demanda de produtividade do capitalismo.

Andar. Embriagar-se. Andar ao ritmo da sorte. A flânerie é o âmbito anárquico dentro do âmbito capitalista, é a destituição do indivíduo a partir do múltiplo. A dissolução do rosto e da identificação no ritmo dos passos. Espaço transformado em meio afetivo. O ocularcentrismo desaparece diante da inutilidade da classificação. Não há necessidade de reconhecimento, de presença para si e para os outros. Não há outros, há vínculos, correspondências, sistemas simpoiéticos, uniões e fluxos. Ninguém quer possuir ou ser possuído. Não podemos nem falar de amor, porque não há lógica de propriedade privada. O silêncio de quem caminha interrompe a vida como mercadoria.

O corpo se move e, no entanto, está quieto. A quietude é a interrupção da dívida. O corpo, o sujeito, o eu e o nome próprio deixam de se conjugar no presente ou no passado. São conjuntos, constelações, em meio ao fluxo da própria vida. Aqui, não há história ou arquivo. Se o fantasma aparecer, é só para dançar um pouco.

Tudo está sem solução: a peculiar indecisão do flâneur. “Assim como aguardar é o estado próprio do contemplativo imóvel, parece que duvidar é próprio do flâneur. Numa elegia de Schiller lê-se: ‘A asa indecisa da borboleta’. Aqui se apresenta a mesma relação de impulsividade e sentimento de dúvida que caracteriza a embriaguez do haxixe.” Em meio a essa experiência, onde fica a rua? Não é mais só cimento debaixo dos pés.

Se a flânerie é um modo de interrupção do eu endividado, nem mesmo a rua é necessária, ela pode ser praticada mesmo quando se está sentado. Por exemplo, quando você lê um livro por ler e não para cumprir uma obrigação acadêmica ou cultural. Ao rir às gargalhadas com um amigo, porque amizade é alguma coisa, é relacionamento sem dívidas. Também a flânerie no cinema: às vezes, ao assistir a um filme, acontece uma experiência em que se está dentro daquele filme, diminuindo a distância entre o objeto e o sujeito. Há momentos em que ver filmes é ser cinema. Ou quando a razão deixa de suturar e ordenar a vida de acordo com a ordem da dívida capitalista.

Finalmente, pensar na flânerie não como personalidade mas como prática vital nos permite iniciá-la conscientemente quando é necessário ou urgente. Renunciar a ser flâneurs e flâneuses em tempo integral. Treiná-la e embriagar de quietude o reino da vida produtiva. Praticá-la para interromper a dívida do eu; voltar a ela por desejá-la.

 
Referências
  • David Graeber, Schulden. Die ersten 5000 Jahre. 1. Auflage. Klett-Cotta Verlag, Stuttgart 2012, S. 19.
  • Walter Benjamin, „Der Flaneur“, zitiert nach den Gesammelten Schriften Walter Benjamins, Herausgegeben von Rolf Tiedemann. Band V, Frankfurt am Main, 1991. S. 529, 535, 536, 1053.
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Este artigo foi publicado originalmente no livro Blickwinkel: marasmus, editado pelo Goethe-Institut México e pela Pitzilein Books.

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