Riqueza e distância  O vírus dos pobres

A distância é preciosa. E e ela decide sobre a vida e a morte. Enquanto os ricos compram o máximo em distanciamento social, os mais pobres ficam abandonados à própria sorte.

Quando a pandemia começou na Alemanha e o vírus ultrapassou as cancelas de segurança e as fronteiras entre países, chegando aos blocos de Carnaval e ao restaurante, à fila do supermercado e à igreja. Naquele momento, havia apenas um lugar seguro: a própria casa. O coronavírus foi como um deslocamento de placas continentais. A sociedade desmoronou-se em pequenas ilhas que chamamos de espaço doméstico, família nuclear, sistema de turnos ou comunidade de infecção. Muitos estavam sentados involuntariamente na mesma ilha; outros puderam escolher com quem passar o tempo. A distância transformou-se em bem maior.

As ilhas metafóricas que habitamos em tempos de coronovírus têm tamanhos distintos. Pode ser um apartamento em habitação social, dois cômodos para cinco pessoas ou uma propriedade rural com bosque próprio, portão de ferro e estradinha de acesso de cascalho. Na nossa sociedade, a distância não é igualmente distribuída. Enquanto alguns ficaram exasperados com o aperto, outros praticamente nem se deram conta das medidas de proteção e das novas regras contra o vírus. A ilha própria e solitária é sonho e pesadelo ao mesmo tempo. Desde que o náufrago Robinson Crusoé de Daniel Defoe foi obrigado a viver 28 anos em uma ilha, ela se tornou objeto de um gênero literário próprio: a robinsonada, que narra o isolamento total. A ilha era castigo, a ilha era exílio. Mas ela também é paraíso, natureza intocada, uma pausa e até a possibilidade de desaparecer para sempre do convívio social.

O distanciamento pode ser comprado

A distância começa, contudo, nas pequenas coisas: o carro próprio em lugar do metrô, talvez uma casa com jardim em lugar de um apartamento de aluguel, uma piscina particular em lugar de uma pública, negócios em lugar de economia. Quem tem mais dinheiro, ganha mais espaço. O distanciamento pode ser comprado. E a sociedade é algo imponderável. Não podemos determinar quem vai ocupar o apartamento ao lado do nosso, nem se o lixo vai ser recolhido às 7 da manhã gerando ruído. Podemos eleger e protestar, mas não promulgar leis. Não somos nós quem decidimos quem vai se sentar à mesa ao lado no restaurante, nem se o grupo que está alojado na outra extremidade do corredor do hotel vai ouvir música alta toda noite. Não podemos controlar nosso entorno. Embora dinheiro suficiente traga a promessa de que talvez possamos.

No exato segundo em que o distanciamento social chegou à Alemanha, vieram à tona os primeiros espertalhões apontando que, mais do que distância social, se tratava de distância física. E é claro que tinham razão: a distância não é a mesma para todo mundo. Quem tem dinheiro, quer preservá-lo. O que alguns consideram injusto é considerado por outros inveja social. O percentual mais rico da sociedade alemã detém atualmente 35% do patrimônio líquido do país. E quando os pobres reivindicam mais, isso significa, em raciocínio inverso, menos para os ricos. A fábula da ascensão social possível para qualquer um, ou da riqueza que para ser atingida basta trabalhar duro, é uma bela ideia e, como toda fábula, vem sendo repetida pelos ricos como uma historinha a ser contada à noite para acalmar antes do sono. Há desigualdade no país. O deslocamento de placas continentais começou antes, bem antes do coronavírus.

Distância: chave para a saúde

A distância tornou-se uma necessidade. E, para suprir essa necessidade, é preciso uma coisa: dinheiro. No entanto, desde o coronavírus que a distância deixou de ser uma necessidade exclusiva dos abastados, consequência natural da bonança, para se transformar em chave para a saúde. O nível de distanciamento dos outros decide sobre a saúde e a doença. Você trabalha em home office ou em companhia de outras pessoas? Você pega metrô de máscara ou pode andar de táxi ou no seu próprio carro? Você vai às compras ou pede por delivery? A distância custa dinheiro e promete saúde.

A primeira onda do vírus atingiu todo mundo. Ela disseminou-se de Wuhan para o resto do planeta, tendo sido transportada e levada por aqueles que estavam viajando pelo mundo ou apenas tinham ido praticar esqui. Foram os ricos que distribuíram o vírus pelo planeta e, de início, ficaram tão doentes quanto todos os outros. Alguns meses mais tarde, contudo, o vírus se transformou em um vírus dos pobres. As três torres do Centro Iduna, na cidade alemã de Göttingen, 18 andares e 700 pessoas em quarentena. O conjunto residencial nos arredores da estação Ostbahnhof, em Berlim: seis andares, 200 pessoas em quarentena. O bairro berlinense Neukölln, de alta densidade demográfica, onde em sete pontos diferentes quase 400 residências ficaram em quarentena – com até dez pessoas por domicílio. O abatedouro em Coesfeld, o abatedouro da empresa Tönnies. Trata-se de um vírus do espaço apertado.

Ilhas de infectados

Quando o vírus se alastrou pelo abatedouro Tönnies e ainda se discutia o confinamento total, o secretário da Saúde da Renânia do Norte-Vestfália, Karl-Josef Laumann, afirmou que os infectados seriam “pessoas que praticamente não participam de determinados setores da vida social”. Sendo assim, nas palavras de Laumann, não seria necessário fechar restaurantes ou academias de ginástica. As ilhas de infectados estão à deriva bem longe do resto da sociedade. Enquanto de início o vírus deveria ser mantido lá fora, agora a tentativa é mantê-lo dentro. No apartamento, no reduto de conjuntos habitacionais, no bairro. Se preciso, dentro de cercas.

Quem é pobre depende da sociedade: de espaços públicos como bibliotecas, centros de convivência para a juventude, piscinas públicas; de um transporte público que funcione, de um plano de saúde público ou do supermercado mais barato. A sociedade deve ser algo para todos e ela carrega solidariamente os mais pobres.

O coronavírus suspendeu essa regra. Os supermercados baratos foram os primeiros a ficar desabastecidos. E aqueles com pouco dinheiro para comprar estoques, ou seja, aqueles para quem o dinheiro não chega todo mês, precisaram madrugar, a fim de conseguir pelo menos alguma coisa. Aí desapareceu a vida no espaço público. As bibliotecas, as escolas e o café do bairro não podiam mais abrir. Durante algumas semanas, nem mesmo as entidades que recolhem gêneros alimentícios para distribuí-los aos necessitados.

O vírus mudou primeiro a sociedade, depois mudou a si próprio. Os focos da infecção estão agora onde muita gente tem pouco. O vírus tornou-se social em lugar de global. O distanciamento social pode ser entendido literalmente: a distância de outros grupos sociais nos mantém saudáveis – contanto que pertençamos ao grupo certo. No entanto, já antes do coronavírus, os grupos sociais gostavam de ficar entre si. A semelhança com o interlocutor nos protege também da sensação de que as coisas são bastante injustas na Alemanha.

Proximidade e generosidade

Três pesquisadores do Instituto de Doenças Neurológicas e Acidentes Cardiovasculares de Maryland, nos Estados Unidos, demonstraram, através do escaneamento do cérebro, que há uma região cerebral responsável pelo altruísmo. A conduta altruísta não é nenhuma máxima social, mas sim parte do ser humano. Nosso cérebro mal pode tolerar a injustiça, mas ele encontra também uma solução: simplesmente desliga determinadas áreas. Keely Muscatel, uma neurocientista da Universidade da Califórnia, mostrou a diversos participantes de uma pesquisa fotos de crianças com câncer e observou a seguir a atividade cerebral dos mesmos: o cérebro dos ricos mostrou menor atividade. Era como se eles tivessem desaprendido a compaixão. Ter dinheiro e testemunhar a pobreza leva o cérebro a um estado de tensão dificilmente tolerável, então é preciso se proteger permanecendo entre os seus.

É ruim querer estar entre os seus? Não preferimos todos estar entre aqueles que se parecem conosco? Não nos sentimos especialmente bem em nossas câmaras de eco? Depende se você deixa seu olhar vagar de novo. Quanto mais próximas as pessoas são umas das outras, mais generosas elas são. Os desabrigados que dividem o pão e um lugar na rua para dormir; os ricos que sem hesitação levam os amigos para as férias. O professor canadense de psicologia Stéphane Côté, que também participou das pesquisas sobre reconhecimento de emoções, investigou se os ricos seriam mais avaros que os pobres e foi obrigado a, de início, admitir: sim. No entanto, não é a própria riqueza que faz com que as pessoas sejam avaras, mas a diferença entre ricos e pobres. Onde a desigualdade era extremamente visível e a distância grande, os ricos eram menos generosos do que onde havia uma aproximação. Quando as pessoas tinham a sensação de que o outro tinha direito à sua assitência, elas ajudavam menos.

A distância social estreita o olhar

O direito à ajuda mostra ao mesmo tempo distância e proximidade. Posso dar a uma pessoa algo que ela própria não tem, e isso nos distingue. Mas esse direito só existe, porque todas as pessoas são iguais, porque são próximas. Pelo menos em tese. O ser humano ajuda um outro quando consegue se reconhecer nele. Quando nós mesmos nos delimitamos, como vamos encontrar os pontos em comum? A Alemanha é um Estado social, é assim que funciona este país. Os impostos financiam o espaço público, as ruas, o sistema subvencionado de tráfego urbano; eles pagam a educação, a cultura, a segurança pública e a política. E agora eles pagam muitas das medidas contra o coronavírus. Grande parte das receitas arrecadadas através dos impostos vem dos ricos, segundo averiguou o Instituto de Economia Alemã. Mas o que fazer quando alguém acha que não depende deste Estado e não quer dar mais nada a ele?

Se você quiser, o dinheiro mantém a sociedade à distância. Enquanto nós, normalmente, precisamos uns dos outros e por isso precisamos nos suportar, a riqueza transforma as relações sociais em mercadoria e as tornam cambiáveis. Como uma criança pequena que faz birra, é possível ir embora quando a família não agrada mais ou quando os amigos, os colegas, a cidade ou até o país não aprazem. A distância torna a vida controlável e o próprio mundo supostamente amplo. Mas distância, sobretudo a distância social, estreita o olhar. O olhar através do qual vemos outras pessoas e outras realidades de vida e aprendemos sobre o que é ser humano. Não é apenas a sociedade que se beneficia dos ricos, mas também os ricos se beneficiam da sociedade. A distância pode ter se tornado um bem de valor, mas nenhum ser humano é uma ilha.

Uma versão mais longa deste artigo foi publicada originalmente em julho de 2020 no jornal alemão Zeit Online.

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