Entrevista com Rosane Borges  “O racismo é um dínamo do capitalismo”

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Para a teórica brasileira Rosane Borges, a “virada operada por Marx” não concebe questões pretensamente ligadas à natureza tais como raça e gênero como elementos vitais e essenciais para se pensar a dinâmica do capitalismo.

A questão racial foi percebida pelo pensador alemão Karl Marx (1818 – 1883) como fator determinante para as relações de exploração do trabalho? Rosane Borges, pós-doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, diz que não. Autora de livros como Esboços de um tempo presente (2016), Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro (2004) e Mídia e Racismo (2012), ela afirma: “Se é lícito falarmos em dívidas, incompreensões e reducionismo, é à teoria marxista que devemos cobrar a fatura por não ter pensado concomitantemente a instauração das desigualdades e hierarquias em consórcio com o racismo e o sexismo, variantes perpetuamente utilizadas para o triunfo do capital”.

A questão racial foi percebida pelo pensador alemão Karl Marx (1818 – 1883) como fator determinante para as relações de exploração do trabalho? Rosane Borges, pós-doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, diz que não. A autora de numerosos livros vê como “dívida” da teoria marxista não ter pensado concomitantemente a instauração das desigualdades e hierarquias em consórcio com o racismo e o sexismo.
 
Como a questão do racismo está inserida no contexto de exploração de classe e na estrutura de reprodução do capitalismo?
 
O racismo é parte integrante de todas as formas de exploração. Em sendo uma delas, o capitalismo estabelece e depende de hierarquias raciais para aprofundar a expropriação da qual se beneficia. O filósofo francês Gilles Deleuze afirma que o conceito de raça faz fermentar o delírio. A raça é a causa de devastações físicas inauditas e incalculáveis, crimes e carnificinas.  O motivo de tanta danação, nos ensina a história, está em formas de subjugação e dominação.
 
O pensador camaronês Achille Mbembe, professor do Instituto de Pesquisa Social e Econômica da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, lembra que, no início do capitalismo, o tráfico atlântico do século 15 ao 19 provocou “pedrações” de toda espécie, desapossamento da autodeterminação de pessoas negras transformadas em homens-objeto, homens-mercadoria e homens-moeda.
 

No Brasil, os negros ocupam os postos de trabalho de menos prestígio, habitando em larga escala o lugar dos que nada têm, a despeito das significativas mudanças nas ultimas décadas.

Rosane Borges


 
Ora, essa mudança violenta de corpos e subjetividades é o princípio ordenador do capitalismo que adota e aprofunda o paradigma de submissão, um modelo de exploração e depredação que se perde sob os lençóis do tempo. Quando analisamos com um mínimo de atenção os papéis dos não brancos no mundo, veremos a posição subalternizada, de classe, que a raça lhes atribui na dinâmica de exploração do capital. No Brasil, os negros ocupam os postos de trabalho de menos prestígio, habitando em larga escala o lugar dos que nada têm, a despeito das significativas mudanças nas ultimas décadas. Racismo é, portanto, um dínamo do capitalismo.   
 
Como a teoria marxista considera essa questão? 
 
A teoria marxista opera uma virada essencial: tira do domínio da teologia, do direito divino e da biologia a chave explicativa das desigualdades e hierarquias. O campo da teoria social e econômica, tronco de onde florescem os postulados marxistas, afastou da categoria classe qualquer vínculo com o mundo natural. Tudo isso reflete-se em novas formas de concepção dos sujeitos.  O discurso do reconhecimento e da identidade é obra da nossa aventura moderna. No antigo regime, a honra estava vinculada a exclusões, intrinsecamente ligada a desigualdades: para que alguns tenham honra, é preciso que nem todos tenham. Lembremos a descrição da monarquia pelas lentes de Montesquieu e veremos o caráter seletivo da honra.
 
O discurso moderno solapa com a noção de honra para dar legitimidade ao de dignidade, usada num sentido universalista e igualitário: ao contrário da honra, a dignidade supõe uma partilha coletiva de todos, valor compatível com a assunção das sociedades democráticas. Na esteira do reconhecimento e da dignidade, a identidade individual e autenticidade compõem-se na mesma atmosfera política. Nas sociedades hierárquicas, o que hoje é chamado de identidade era fixado pela posição social de cada um, pelos papéis ou atividades vinculados com essa posição. Todas essas mudanças, de alta envergadura sem dúvida, são caudatárias da percepção marxista de que o sistema de produção capitalista e a mudança histórica são as molas que fundam e impulsionam o papel dos indivíduos na sociedade. Nessa virada operada por Marx, como assinalei, raça e gênero não foram concebidos como fruto das formações sociais, mas permaneceram como questões ligadas à natureza. A religião, como nos lembra o sociólogo brasileiro Antonio Sérgio Guimarães, não foi vista como peculiar ao sistema capitalista, mas a modos anteriores.
 
Você concordaria, então, com a premissa de que Marx e Engels foram insensíveis à complexidade da raça nas contradições da luta de classe?
 
Não diria insensíveis, mas, como afirmei acima, raça, gênero e religião foram vistos como algo relacionado à natureza e, por isso, não constituíram elementos vitais para se pensar a dinâmica do capitalismo. Obviamente que, como qualquer teoria exposta à prova pela experiência histórica, houve, digamos assim, uma influência no sentido anti-horário da luta política antirracista e antissexista nas reconfigurações do marxismo. Uma compreensão plena das desigualdades, da pobreza, da exclusão passa pelo laço indissolúvel entre raça, classe e gênero.
 
Como podemos entender essa complexidade considerando que as teorias de ambos foram escritas na segunda metade do século 19?
 
A escravidão, no contexto do século 19, foi considerada um entrave civilizatório. Mas apenas na Europa Ocidental, com a Inglaterra e a França na dianteira de uma nova forma de organização política  dos países europeus. Este mundo burguês   expande a exploração do capital aprofundando a escravidão onde se mantiveram formas de produção já extintas no Ocidente, como a escravidão e a servidão de indígenas e africanos – na África e na Ásia.  Nas sociedades modernas, os arcaísmos raciais e étnicos permaneciam, ganhando novas feições e dinâmicas. Eis a astúcia da história: a emergência deste “novo homem” se deu sem soterrar os arcaísmos de tempos pretéritos. A coexistência desses dois mundos fez com que gênero e raça pudessem disputar, tanto no âmbito da teoria social quanto da ação política, a sua presença indigesta no jogo da conformação das desigualdades e hierarquias. Este é um dos postulados essenciais que instaurou em definitivo o feminismo negro. 
 
Em ¨Feminismo negro e marxismo. Quem deve a quem?, você finaliza afirmando que é à teoria marxista que devemos cobrar a fatura por não ter pensado concomitantemente a instauração das desigualdades e hierarquias em consórcio com o racismo e o sexismo. Qual é a dívida e como saldá-la?
 
Falei em dívida para me referir a criticas infundadas reputadas como marxistas.  A dívida reside em desconsiderar que a lógica do capital, como bem lembrou a antropóloga Lélia González, uma das principais feministas negras brasileiras, nutre-se de uma realidade histórica incontornável: exploração de classe e discriminação racial constituem os elementos básicos da luta de homens e mulheres pertencentes a uma raça subordinada.
 
Se é lícito falarmos em dívidas, incompreensões e reducionismo é à teoria marxista que devemos cobrar a fatura por não ter pensando concomitantemente a instauração das desigualdades e hierarquias em consórcio com o racismo e o sexismo, variantes perpetuamente utilizadas para o triunfo do capital. Mas como preferimos pensar a questão de maneira proativa, ousamos afirmar que os feminismos negros têm a potência de efetuar uma influência no sentido anti-horário, tal como as grandes obras da literatura, ao se instalar nas brechas abertas pelo receituário marxista, oferecendo ferramentas para que tonifique seu diagnóstico sobre a estratificação das classes, levando em conta a matéria-prima (racismos e sexismos, fundamentalmente) de uma realidade que molda a vida de mais da metade da população do planeta.
 

Rosane Borges

é jornalista e professora universitária. Pós-doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e autora de diversos livros, entre eles Esboços de um tempo presente (2016), Espelho infiel : o negro no jornalismo brasileiro (2004), Mídia e racismo (2012). 
 

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