Entrevista com Leda Maria Paulani  “O socialismo é uma ideia reguladora”

Entrevista Leda Paulani Copyright: Revista Comando

A economista e professora da Universidade de São Paulo (USP), Leda Paulani, fala sobre a atualidade do pensamento marxista na América Latina e no mundo.

O pensamento do filósofo Karl Marx, de acordo com a economista brasileira Leda Paulani, segue ajudando a compreender os principais problemas relacionados ao capitalismo contemporâneo, como o acúmulo de riqueza, o aumento das desigualdades sociais e a perda de força da classe trabalhadora. Em entrevista, Paulani fala sobre esses temas e propõe o socialismo como “uma ideia reguladora”.

Qual a atualidade do pensamento marxista na América Latina?

A atualidade desse pensamento é igualmente importante qualquer que seja o espaço do globo onde atue o modo de produção capitalista, o que hoje ocorre praticamente no mundo todo. Na América Latina não é diferente. Aqui há especificidades como a questão da dependência, que tem de ser repensada e está sendo repensada por autores marxistas.

Quais foram as conquistas do marxismo que permaneceram nesses dois séculos?

É difícil falar em “conquistas”, mas, de qualquer forma, penso que o impulso que o pensamento de Marx deu no mundo todo à luta das classes trabalhadoras contra a exploração e a opressão das classes proprietárias é responsável por tudo que temos de minimamente civilizado no mundo das relações de trabalho, como os direitos trabalhistas, e em outros planos, como o próprio Estado do bem-estar social. Agora, é evidente que tudo isso está hoje sendo posto em xeque e por razões que Marx pôde prever perfeitamente. Nesse caso, estaremos falando não das “conquistas” mas da atualidade do pensamento de Marx.

Marx previu, por exemplo, em sua “Lei Geral da Acumulação Capitalista”, que o sistema, fundado numa contradição, produziria sempre muita riqueza, mas, ao mesmo tempo, também muita pobreza e miséria. Vemos agora, depois que o Estado começou a abrir mão de funcionar como elemento regulador e equilibrador das contradições e desigualdades produzidas pelo sistema, que o capitalismo, deixado a si mesmo, sendo empurrado apenas por sua própria lógica, produz exatamente isso.

Quais são os pontos da teoria marxista que envelheceram e precisam ser repensados na contemporaneidade?

Para mim, o ponto mais importante previsto por Marx e que envelheceu é sua afirmação de que, no plano mundial, o dinheiro teria sempre que ser uma mercadoria de verdade, produzida pelo trabalho humano, no caso o ouro (ou “o valor em pessoa”, como ele o chamava). Bem, isso deixou de ser verdade desde o início dos anos 1970, mais especificamente desde 1971, quando o ex-presidente americano Richard Nixon desvinculou o dólar americano do ouro, rompendo assim, unilateralmente, com o Acordo de Bretton Woods, que havia organizado as finanças internacionais depois da Segunda Guerra.

Apesar de não ter mais nenhum vínculo com uma mercadoria de verdade, mesmo remoto, o dólar americano continua funcionando como dinheiro mundial. Mas, apesar desse erro de previsão de Marx, sua teoria monetária é completamente atual, até porque dá margem à criação de conceitos como “capital portador de juros” e “capital fictício”, que estão hoje no centro do debate em torno dos rumos do capitalismo, por exemplo, nos debates acerca da financeirização do processo de acumulação.

Poderia falar sobre as desigualdades sociais hoje na América Latina, tendo como pano de fundo o marxismo?

No mundo todo, a implantação das políticas neoliberais, desde o início dos anos 1980, produziu e está produzindo um aumento substantivo das desigualdades. Na América Latina não é diferente. Na realidade, o problema aqui é ainda mais agudo, uma vez que o ponto de partida é muito pior, pois as desigualdades (de renda, de riqueza, regionais), qualquer que seja o momento do tempo que se escolha, são sempre muito maiores aqui do que nos países do centro do sistema (as economias desenvolvidas). Quanto à luta de classes, ela vem se diferenciando da forma clássica que passava por greves e manifestações sindicais.

Como os sindicatos perderam força e importância em todo o mundo (pelo avanço tecnológico, pela perda de força do Estado e pelo cenário de baixo crescimento), o cenário da luta de classes é hoje muito mais o dos movimentos sociais (como os sem-terra ou sem-teto) do que o dos sindicatos de trabalhadores (ainda que eventualmente greves apareçam e possam ser muito importantes). Como já indiquei, a perda de força da classe trabalhadora é geral no mundo, de modo que esse é um fenômeno global. Já os movimentos sociais têm muito mais potencial e força por aqui. Na Europa, por exemplo, não faz sentido um movimento de trabalhadores sem-terra, porque lá foi feita a reforma agrária.

É viável, a seu ver, instituir uma espécie de "novo socialismo" na economia global como ela funciona hoje?

Para responder essa pergunta com precisão seria necessário ter uma definição clara de socialismo e hoje não temos isso. Há princípios gerais, como por exemplo, respeitar o homem como gênero (respeitar e dar dignidade ao gênero humano enquanto tal), acabar com qualquer tipo de exploração e opressão etc., mas não temos as indicações práticas sobre o que fazer e como fazer. No entanto, para mim, duas coisas são certas. A primeira é que, apesar de não termos nenhuma receita pronta de socialismo, sabemos perfeitamente em que direção caminhar nas lutas do dia a dia, justamente porque os princípios nós temos.

Gosto de dizer sobre o socialismo aquilo que o filósofo alemão Immanuel Kant dizia sobre o Bem. Ele dizia que, apesar de não sabermos exatamente o que é o Bem, temos que agir como se soubéssemos, ou seja, o Bem é uma “ideia reguladora”. O mesmo pode ser dito do socialismo: podemos não saber exatamente o que ele é, até porque ele terá que ser construído pela história, mas temos que agir como se soubéssemos. O socialismo é uma ideia reguladora. A segunda coisa que é certa é que, na economia global, tal como ela funciona hoje, não há a menor possibilidade de instituir qualquer coisa parecida com socialismo.

O “mundo em rede”, impulsionado pela revolução digital e que produziu previsões alvissareiras sobre as possibilidades de cooperação, liberdade de criação e “economia do compartilhamento”, acabou por gerar corporações gigantescas, como a Google, a Amazon, o Uber, o Facebook – superpoderosas e muito pouco transparentes.

Como, em termos de política econômica, elementos do marxismo podem ser usados para repensar o Brasil nos tempos atuais?

Marx explica o capitalismo, como ele funciona, qual é a sua lógica, seu desenvolvimento. Ele nada diz sobre política econômica. Sequer sobre o Estado ele fala muito. Mas elementos do marxismo nos ajudam a ver exatamente onde estão os problemas, sobre o que ser contra e sobre o que ser a favor. Por exemplo, qualquer coisa que retire direitos dos trabalhadores, como as reformas recentemente aprovadas em nosso país (além de tudo por um governo ilegítimo) deve ser criticada (aliás, mesmo um liberal como Adam Smith, considerado fundador da Ciência Econômica, reconhecia que na relação de compra e venda de força de trabalho há uma assimetria, porque os trabalhadores são sempre muito mais frágeis do que aqueles que os contratam).

 

Leda Paulani Doutora em Teoria Econômica pelo IPE/USP e professora titular do Departamento de Economia e da Pós-graduação em Economia da FEA-USP. É pesquisadora visitante do NEEDDS (Núcleo de Estudos Estratégicos em Democracia, Desenvolvimento e Sustentabilidade) da UFABC e publica regularmente em periódicos nacionais e internacionais. É autora, entre outros, de Modernidade e Discurso Econômico e Brasil Delivery (Boitempo Editorial).

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