Bya de Paula

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Natural de Porto Alegre, Bya de Paula é formada em Jornalismo pela Universidade Federal de Pelotas, especialista em Poéticas Visuais pela Universidade Feevale e mestranda do curso de Ciências da Comunicação da Unisinos. A artista e jornalista vem trabalhando de forma independente com documentários audiovisuais etnográficos e poéticos, participando frequentemente de festivais de cinema experimental, bem como, de exposições artísticas coletivas e individuais, com produções em fotografia, artes gráficas, pintura, gravura, livro de artista e instalações sonoras. Na música, Bya atua como baterista da banda de post rock Polvö, que recentemente lançou seu terceiro single. A artista recebeu nos anos de 2018 e 2019, o Prêmio DANA de Artes Visuais, e em 2020 foi uma das vencedoras do Concurso de Arte Impressa do Instituto Goethe - Porto Alegre e Casa da Artes - Novo Hamburgo.

Bya de Paula - Escrita translúcida (2020). Livro de artista: monotipia/frotagem sobre acetato e adesivo. 1 x 0,3m. Bya de Paula - Escrita translúcida (2020). Livro de artista: monotipia/frotagem sobre acetato e adesivo. 1 x 0,3m.


Entrevista com Bya de Paula
Por Mel Ferrari


Você trabalha com música, arte sonora, jornalismo e audiovisual. Fale um pouco sobre a relação dessas áreas com a pesquisa artística que você vem desenvolvendo através das mídias obsoletas como fitas K7, VHS e CDs e também da técnica da monotipia e a frotagem que você utiliza.

Vejo todos estes campos que você citou compartilhando entre si, da mesma forma que cultura e sociedade compartilham. Assim como a arte sonora por vezes está para questionar alguns elementos do audível/música em seus modos mais tradicionais, o audiovisual e suas possibilidades expandidas estão, por vezes, para questionar também elementos contidos nas formas mais usuais de comunicação, como no jornalismo. 

Considero nas minhas pesquisas artísticas que os aparelhos tecnológicos que possuímos ao longo dos tempos, tanto de áudio, quanto de som, têm muito a dizer sobre nós, enquanto sociedade. Criamos aparelhos para nos comunicar e meios para registrar momentos, informações, sons, como é o caso do videocassete e a fita VHS, dos CD’s e fitas k7. Nossas relações de consumo, desejos, afetos estão impregnadas nestas materialidades de registros, no que julgamos que vale a pena ser comunicado, gravado. Inclusive, de que forma interagimos com estas materialidades e depois, do mesmo modo, como passamos a não interagir mais com elas.

Da mesma forma que vejo estes campos - que você citou anteriormente - compartilhando entre si e se expandindo, vejo estas potencialidades contidas nas materialidades, hoje obsoletas, das fitas e do CD. Minha curiosidade artística ao olhar estes materiais, partiu inicialmente de um questionamento: que outras formas visuais estes materiais ainda teriam o potencial de gerar? Então comecei a experimentar com os materiais, de diversas formas, colecionando vários tipos de resultados. A monotipia e a frotagem me serviram de matriz técnica para criar uma forma de gravação experimental a partir da transferência dos materiais químicos contidos nas fitas e do CD. Acredito que neste caso, configurei uma nova forma de gravar imagens que julguei que valiam a pena ser registradas, (re)gravadas.  Então foi uma mistura de provocar atrito nos materiais, de friccioná-los, fazer descolagens e colagens, trabalhando com monotipias sobre o material translúcido. Entre as obras, têm os livros de artista e gosto de pensar que através deles estas mídias estão tendo a chance de contar outras histórias sobre elas mesmas. Dependendo da obra, ainda reaproveito outras materialidades das fitas, como as capas, os rolos, ou até os leds que encontro dentro dos videocassetes, pois experimento também com os materiais eletrônicos, mas isto fica ainda para uma outra conversa!
 

Bya de Paula - Escrita Lúcida (2020) Livro de artista: fita VHS (matriz de impressão) sobre papel. 2m x 0,25cm Bya de Paula - Escrita Lúcida (2020) Livro de artista: fita VHS (matriz de impressão) sobre papel. 2m x 0,25cm


Pensando a relação afetiva que desenvolvemos com os objetos e com a noção de acúmulo proporcionada por uma sociedade voltada para o consumo, como você enxerga essas questões e como elas se refletem em sua pesquisa artística? 

Criamos os objetos tecnológicos normalmente para desenvolver tarefas por nós e para nós. Estes objetos estão cada vez mais incluídos no nosso cotidiano. Então, compartilhamos a nossa vida e afetos através deles e com eles. 

No entanto, nossa relação afetiva com eles é unilateral e descartável. Nós dividimos afetos com estes objetos e não os percebemos nos olharem de volta. Frequentemente surgem versões mais atualizadas dos objetos tecnológicos que utilizamos e rapidamente os substituímos, mesmo que ainda estejam em funcionamento. Sendo assim, outras versões mais novas do produto roubam-lhe os holofotes. E algo nessa relação que temos com eles se transforma, ou se perde. Contudo, acabamos por empilhá-los num canto ou descartá-los. O problema não está só na renovação dos objetos em si, mas também na forma como vamos lidando com essa relação. 

Então, criar outras visualidades através deles, me instiga. Se trata também de dar oportunidade ao próprio dispositivo de se pronunciar, tanto para mostrar suas potencialidades ainda latentes, quanto chamar atenção para suas materialidades, que ainda estão no mundo. 

Também reflito sobre os meios de gravação das fitas e CD, quando compartilhamos nossas memórias nestes materiais e depois sobre o trabalho artístico desenvolvido a partir deles. Penso que este trabalho acaba por interferir na memória que temos também sobre os objetos e que também interferimos na memória dos próprios objetos. Assim, olhar para eles também me faz pensar em como arquivamos nossas histórias ao longo dos tempos, como era nossa vida com eles no seu tempo histórico...e como seria a vida sem eles? Dessa forma, acredito que recolocá-los novamente na cultura também acaba por promover novas interações sócio-históricas com ele na contemporaneidade. Os objetos obsoletos existem e eles ainda convivem com a gente. Podemos não utilizar mais eles. Contudo, esta não-interação que ignora a existência deles, não faz com que eles não existam mais. Pelo contrário. Essa relação, ou a falta dela, continua a dizer muito sobre nós, enquanto sociedade.

Pensando sobre a obsolescência programada dos aparelhos que você utiliza em sua produção artística, ao mesmo tempo em que você transforma a matéria em obra de arte, outra obra se perde no processo, a música gravada na mídia. Fale um pouco sobre essa ressignificação dos objetos e da relação com a sustentabilidade e meio ambiente?

O processo de ressignificação, inicialmente, se trata de aproveitar que a arte também nos permite criar outros caminhos possíveis. Mas criar caminhos possíveis a partir de objetos que já estão no mundo e que tem todo um contexto próprio prefigurado, se torna ainda mais desafiador. Interferir na obra de outro artista, para mim, significa provocar este atrito. Além disto, não podemos esquecer que estes objetos obsoletos (tanto os CD, as fitas, quanto os aparelhos de DVD e videocassetes) fazem parte de uma produção industrial seriada, logo, tecnicamente não estou destruindo a aura de uma obra de arte, visto que possivelmente ainda existem milhares de exemplares dela ainda por aí. Por outro lado, se eu considerar apenas a obra gravada nela, me agrada pensar que estou compartilhando uma experiência única com o artista que a criou, quando crio meu trabalho no mesmo material. Talvez este artista tenha realizado seu trabalho antes mesmo de eu nascer, ou quando eu ainda não tinha condições de criar nada. E nesse ponto misturamos nossas experiências em temporalidades diferentes. E assim, criamos juntos outras histórias.

Também lembro mais uma vez que estas materialidades ainda tomam lugar no mundo, que ainda existem e que quando são descartadas erroneamente, causam um grande impacto ambiental. Vivemos em um momento que não podemos mais ignorar isto. Cada vez mais adquirimos aparelhos novos, absorvendo sempre as regras impostas pela aceleração tecnológica. Mas estes aparelhos que ainda persistem no mundo, nos mostram também que estas regras são contestáveis. E eles ainda permanecem, subsistem e por vezes, resistem.

Falando brevemente sobre a minha experiência com a manipulação dos materiais químicos das fitas magnéticas, logo que comecei a trabalhar com eles, manipulava sem máscara e sem luvas e acabei ficando doente por um curto período, pois estes materiais contêm metais pesados. Por essa razão, alguns destes trabalhos chamei de Poeira Negra, expressão conhecida na química, referente a resíduos tóxicos. Agora, imagino estes materiais em grande quantidade em lenções freáticos, contaminando solos. Isto porque eles não desintegram depois que o descartamos.

O lixo eletrônico é uma pauta global, não à toa. É uma pauta não resolvida.  Nós não temos mais o tempo que tínhamos para pensar e aceitar erros ecológicos, como tínhamos na época que estes objetos nasceram.

Estes objetos tecnológicos obsoletos que persistem, ainda são gentis em nos oferecer suas materialidades e ainda reflexões através deles. Desta forma, eles continuam mostrando que estão aí no mundo e talvez até queiram morrer, mas eles não podem. Eles foram criados para existir indeterminadamente. E olhar para eles, hoje, nos sugere pensar nisso. Não se trata de nostalgia, mas de provocar reflexões acerca disto tudo.
 

Bya de Paula - Poeira Negra (2019/2020). Monotipia/frotagem sobre acetato e adesivo 2,20m x 1,50m. Bya de Paula - Poeira Negra (2019/2020). Monotipia/frotagem sobre acetato e adesivo 2,20m x 1,50m.



Sua pesquisa envolve reflexões sobre a tecnologia e a sociedade. Tendo em vista todo cenário que estamos vivenciando em função da Covid-19, você acredita que haja um estreitamento na relação entre os indivíduos e os dispositivos tecnológicos? Como sua produção artística tem sido atravessada pelas imposições da quarentena?

Eu comecei as pesquisas nestes materiais, ano passado, antes da pandemia. O estudo vinha avançando, mas a nossa relação foi ficando mais estreita ainda logo que veio a pandemia. De repente fiquei presa às telas (computadores, celulares) e como eu já havia comprado antes várias fitas cassetes, fiquei presa em casa com elas também.   Como eu de fato estou respeitando o distanciamento social, fui ficando sem ter acesso a muitos dos materiais que utilizo além das fitas. Muitas lojas fechando indeterminadamente também, se fosse o caso de ir comprar. Então fiquei, por um lado, vivendo mediada por dispositivos contemporâneos e por outro, convivendo com os dispositivos obsoletos, compartilhando com eles uma temporalidade estranha. Mas posso dizer que nesse contexto de pandemia foi desafiador produzir com pouquíssimos materiais e que foi proveitoso exercitar o pensamento sobre as diferentes temporalidades dos dispositivos que eu estava convivendo. Esta experiência proporcionou também reflexões sobre os objetos tecnológicos, do tipo: como seria a pandemia na contemporaneidade dos videocassetes? Como estaríamos registrando estes momentos? Não existiram lives. Como seriam nossas oportunidades tecnológicas de convívio social? Será que estaríamos gravando vídeos nas fitas e enviando de alguma forma ‘analógica’ nossas mensagens? Teríamos aulas por VHS? de que forma isso aconteceria?

Agora, considerando nossa contemporaneidade, por uma via penso que existe o estreitamento entre os indivíduos através das tecnologias de hoje, em tempos de pandemia. E por outra via, observo que uma grande parcela da população não tem recursos financeiros, acesso à tecnologia. Temos tecnologia de sobra a ponto de termos montanhas de aparelhos obsoletos, ou seja, conseguimos crescer tanto para um lado e por outro, não conseguimos resolver velhos problemas. A questão é, o quanto pensamos sobre isto? É fantástico observar a proximidade entre pessoas que as tecnologias promovem, para quem tem acesso. Só que por outro lado...o muro de desigualdade que já existia, fica cada vez mais desproporcional.

Agosto, 2020
 
  • Bya de Paula - Cinema Rudimentar 1 Bya de Paula - Cinema Rudimentar 1
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