Reinventando SMETAK
Salvador

Entrevista Arthur Kampela

Arthur Kampela ©Jörg Baumann
“Eu quis smetakear a orquestra”
 
Entre o instrumento ocidental e a Plástica Sonora, cabe uma fluência no gesto de tocá-los. Uma espécie de balé ou dança assimétrica. É por isso que o compositor carioca Arthur Kampela define a si mesmo como um coreógrafo da gestualidade. Em sua peça, “...tak-tak...tak...”, ele explora o hibridismo nos instrumentos e é o único entre os compositores deste projeto a usar as esculturas sonoras originais, o Chori Sol e Lua e a Vina, considerada uma obra-prima. Aluno do compositor Hans-Joachim Koellreuter, que convidou Smetak para os Seminários Internacionais de Música da UFBA, Kampela também apresenta ao público a sua Árvore Elástica, elemento coletivo, inspirado no Pindorama de Smetak. Com a ideia de “smetakear a orquestra”, o compositor define a importância do que será tocado pelo Ensemble Modern: a universalidade de ser brasileiro.
 
A sua peça, “...tak-tak...tak...”, propõe subverter as limitações técnicas das Plásticas Sonoras e alcançar o virtuosismo de instrumentos tradicionais. Como chegou a essa ideia?
Toda a minha obra é baseada no conceito de ergonômica. A gestualidade do intérprete também é considerada um material composicional, não só os sons que ele faz com os instrumentos, mas também o gesto, que aqui aparece como substrato temático. O sujeito não pode tocar o instrumento sem considerar a sua morfologia. Esse é o meu primeiro passo para criar uma espécie de vocabulário idiomático da obra. Os instrumentos da música tradicional, como o próprio nome diz, fazem parte de uma tradição acústica, de uma tradição da escuta e têm um vocabulário gestual já decodificado. Toda a ideia de tocar um instrumento e de alcançar um nível muito grande de virtuosismo já está inscrita na trajetória que esse instrumento teve durante todos esses anos. Claro, eles também passam por reformas, por adaptações, mudam de cordas, de material, mas mantêm uma certa integridade para que os sons continuem a ter certas características. Já com os instrumentos de Smetak, há uma subversão na construção. Ele agrega novos materiais, coloca cabaças, molas de relógio, estende as cordas, que não simplesmente acabam onde deveriam acabar em um violoncelo tradicional, por exemplo. Essas cordas estendidas criam outro espaço acústico. Eu, como compositor, tenho que incorporar esse material, porque isso é parte da construção morfológica do instrumento. Mas aí tenho o problema da gestualidade: o que funcionaria em um cello, não cabe na Vina, por exemplo. Eu começo a trabalhar com ruídos e com novos gestos que incorporo para que haja uma fluência entre um gesto e outro, existe todo um balé. Eu me considero um coreógrafo da gestualidade. E não faço a coisa para que ela seja virtuosa, isso não me interessa, eu busco uma nova gestualidade que evita a simples emissão do som. Crio redes rítmicas que sempre colocam o material dentro de uma dança assimétrica. Assim, tanto os instrumentos da orquestra quanto os instrumentos de Smetak passam pelo mesmo tipo de temperatura composicional. Os instrumentos de Smetak não são vistos como algo folclórico, mas como peças fundamentais à percepcção delas pelo público.
 
Você trata os instrumentos ocidentais de forma híbrida, juntando, por exemplo, piano e percussão e dando a um guitarrista a função de intérprete do Chori Sol e Lua, que seria de um violoncelista. Qual a intenção desse gesto?
O mesmo esforço que Smetak emprega para agregar novos elementos aos instrumentos que ele constrói eu uso para compor minha obra. Primeiro, agrego novas posturas para tocar um instrumento tradicional. Eu pego o pianista e o faço tocar piano de maneira normal, ao mesmo tempo em que o percussionista toca dentro daquele piano. Essa hibridização tem a ver com a prática do instrumento coletivo de Smetak. Também subverto a ideia de que um instrumento é para ser tocado por um músico específico, quando não dou a um violoncelista a função de tocar o Chori Sol e Lua. Eu uso uma espécie de fricção smetakiana, mas que é uma fricção kampeliana, porque já fiz isso antes. Aqui, criei esse impedimento, que é uma convulsão, uma fricção ou – gosto desta expresão – um curto-circuito smetakiano. Isso dá um resultado não somente sonoro, mas do ponto de vista do interior da obra. É possível, digamos assim, trabalhar a maleabilidade do músico.
 
Além de instrumentos smetakianos, sua peça nos apresenta a Árvore Elástica, estrutura de sua autoria que é inspirada no Pindorama de Smetak. Pode nos contar mais sobre ela?
Esse foi um insight da minha obra como um todo. A Árvore Elástica é essa estrutura grande, de bambu, que tem bambus mais finos na ponta e dessa ponta saem elásticos que vão até o chão. Nesses elásticos, são pendurados instrumentos de percussão. O que eu quero com isso é criar uma espécie de superinstrumento, quero envolver toda a orquestra como se ela fosse um grande instrumento smetakiano. É como se a orquestra inteira fosse peças dessa árvore. E, pendurados nessa árvore, como frutas, houvesse galhos que fossem os músicos. A Árvore é a síntese de todos esses instrumentos menores que usei, esses híbridos, como o piano tocado ao mesmo tempo pelo pianista e pelo percussionista ou pelo Chori Sol e Lua sendo tocado com maleabilidade pelo violonista. A Árvore é tocada de duas maneiras. Enquanto a obra está sendo executada, um violinista pode parar de tocar e puxar um elástico ou um dos instrumentos percussivos. Há essa concepção de envolvimento do conjunto inteiro, essa referência ao Pindorama. É a metáfora do Pindorama. Há também a ideia da gestualidade e do virtuosismo que eu falei, de tocar o instrumento e estender um gesto dele, para que ele não só toque a si mesmo, mas que toque também uma outra coisa. Eu queria smetakiar a orquestra, essa era a minha ideia. Ampliando um pouco a percepção, a física chamaria essa relação dos músicos de enredamento e esse enredamento também nos traz a ideia smetakiana de improvisação. Quando você escuta Smetak, você tem, às vezes, apenas um instrumento sendo tocado como se fosse vários. Isso cria essa mistura e esse mistério, de não saber a origem do som.
 
Smetak veio para os Seminários Internacionais de Música da UFBA a convite do professor e compositor Hans-Joachim Koellreuter, um dos responsáveis por redefinir o pensamento musical brasileiro. Como você, que foi aluno de Koellreuter, situaria essa influência na produção smetakiana?
Para mim, Koellreuter e Smetak dividem uma posição estética similar, que tem uma “weltanschauung”, essa expressão alemã que significa “visão de mundo”. Uma visão total dos aspectos criativos, onde o próprio questionamento dos meios e das experiências formais resultam em novos paradigmas que renovam nossa percepção de mundo e nossa escuta. Smetak constrói instrumentos que são influenciados por culturas não ocidentais, como a da Índia, por exemplo. O mesmo processo acontece com Koellreuter, que, além do Brasil, lecionou na Índia e no Japão. Ele foi uma espécie de coringa, para quem a música ocidental não era a única saída. Ele traz uma valorização da escuta, uma valorização da ampliação cognitiva da matéria sonora, o que Hélio Oiticica e Lygia Clark fizeram visualmente, por exemplo. Tem a ver com a expulsão do Jardim do Éden, esse jardim que é a música ocidental, onde há figuras sagradas como Bach e Beethoven, e que traz uma renovação do ato de entender o mundo e de escutar as coisas.
 
O que representa para você ser o único compositor neste projeto em cuja peça são tocados os instrumentos originais de Smetak?
Eu considero essas Plásticas, a Vina e o Chori Sol e Lua, os instrumentos mais completos e os mais próximos de minha própria maneira de trabalhar. A Vina é a obra-prima de Smetak. Os outros instrumentos são quase fazedores de som, enquanto esses dois implicam uma técnica que comporta metade dentro da tradição e a outra metade, fora. Em minha prática, eu procuro muitas vezes extrapolar, sair do que um instrumento normal pode fazer. Então, por exemplo, quando eu trabalho com uma viola tocada por um guitarrista, estou criando gestos e sons dentro da viola que não foram desenhados para aquilo. Os instrumentos de Smetak já me oferecem um repertório de gestos completamente não usuais. Para mim, é muito fascinante porque é quase como se eu visse a minha prática pelos olhos de Smetak. Muitas vezes eu já quis colocar, no próprio violão que eu toco, cabaças, pequenos instrumentos de percussão espalhados pelo dorso, de maneira que eu pudesse tocar as cordas e bater nessas coisas e elas criariam novos sons. Nos instrumentos de Smetak isso já está feito para mim. Eu amplio a gama do instrumento e, mais importante ainda, o gesto de Smetak, que é baseado na improvisação, que simplesmente passeia pelos materiais no corpo do instrumento. Eu filtro os instrumentos de Smetak em uma ótica de tempo mais estrita. O instrumento então passa por esse filtro e se renova.
 
Além da celebração a Smetak, o que mais você destacaria na importância deste projeto?
Acho que este é um projeto muito importante para a época que vivemos hoje no Brasil. Por ser algo colaborativo entre os governos do Brasil e da Alemanha e, mais do que isso, porque reestabelece a universalidade de ser brasileiro. Smetak é um sujeito que viveu uma situação criativa na qual ele não só estava imerso nas questões brasileiras como seu ponto de referência, mas ele queria extrapolar a pura nacionalidade do Brasil, que olha sempre para o seu umbigo. Esse desejo de universalidade que aconteceu não só com as nossas obras, mas também na pergunta principal de Smetak, liga o que eu acho mais importante sobre ser brasileiro. Essa época que estamos vivendo agora é muito ruim economicamente, incentivos estão sendo retirados. Então, se a gente recoloca o Brasil dentro de perguntas universais que são pertinentes a pessoas e a países diferentes, isso cria um certo aspecto saudável para a identidade do povo brasileiro. Nossas obras, longe de serem perfeitas, são tentativas de diálogo universal com o outro, não só com o ser do Brasil, mas com o ser universal, que pode encontrar nos instrumentos de Smetak, na postura de Smetak, na sua abertura à concepção sonora, motivos interessantes para ele se fazer as suas próprias perguntas.