Reinventando SMETAK
Salvador

Entrevista Paulo Rios Filho

Paulo Rios Filho ©Luiza Leite
“Não se deixar domesticar é uma necessidade dos criadores no sul do mundo”
 
Único baiano entre os compositores deste projeto, Paulo Rios Filho escolheu trabalhar com a subversão do futuro, algo que Smetak deixou registrado em um dos dois únicos livros que publicou. A ideia de chegar adiante voltando a um elemento primordial, como a cabaça, resultou em “Volvere”, peça que também surgiu de uma reflexão política e poética do lugar deste compositor no mundo. Para Paulo, ter frequentado a Escola da Música da UFBA, onde Smetak ensinou, exerce uma influência inconsciente em sua obra. Mas é o fato de ainda estar no Brasil, fora de um grande centro urbano e consciente de seu papel como artista não-domesticável o maior aprendizado que ele atribui às Plásticas Sonoras.
 
Sua peça se aproxima do pensamento smetakiano de “retornar ao futuro” de tal forma que o resultado reflita a origem da criação. Como você chegou a essa ideia?
É uma peça tecida ao longo de uma capacidade de involução. Um retorno às forças mais básicas, brutas e indomadas da criação, que são, paradoxalmente, as mesmas forças que fazem fugir um futuro nas coisas, nas ideias e no mundo, que puxam, que chamam um futuro, no sentido de algo absolutamente aberto e impossível-possível. “Volvere” é um retorno à célula-tronco, um retorno ao útero, mas não para voltar ao estado de feto. Muito mais com o desejo de que múltiplos órgãos-música tenham a capacidade de acontecer uma vez e de novo. Retorno ao futuro, essa ideia que batiza um dos livros do Smetak, para mim tem a ver com a transgressão da ideia de progresso, de evolução, tão presente em todo canto. É a subversão da ideia de futuro. É um futuro alcançado ao longo do retorno à cabaça – é lá que podemos tocar e sentir o que ainda não é e o que não pode ser. Como dizia o próprio Smetak – e eu sei disso através de Widmer [o compositor, regente e pianista suíço-brasileiro Ernest Widmer, que foi professor da UFBA] –, “criar o incriado”.
 
Você é o único entre os compositores deste projeto que nasceu, cresceu e estudou música na Bahia, na mesma escola em que Smetak ensinou e construiu as Plásticas Sonoras. Como isso influenciou a criação de “Volvere”?
Eu não sei dizer que tipo de influência isso poderia ter tido no meu processo criativo. De fato, é algo que eu ainda não tinha pensado. Com certeza, alguma influência devo ter, mas não é algo consciente. Agora, há uma questão forte nesse trabalho, que é o fato de eu ser o único brasileiro, residente no Brasil, que tive minha formação aqui, que estou atuando ainda no Brasil e totalmente fora de um grande centro. E não estou falando só de Rio e São Paulo, estou falando de uma capital. Atualmente, eu resido no interior do Piauí e isso, sim, é algo que está de forma bem consciente para mim desde o início do meu processo criativo, aliás, desde quando recebi o convite. Esse fato se refletiu de uma forma política, mas dialogando bastante com a poética. É algo que eu gosto sempre de pensar quando estou trabalhando a convite de uma instituição de fora do país. O que essa instituição, ao me convidar, espera de mim? Quais são as expectativas em torno de um compositor que teve sua formação no Brasil e que continua atuando aqui, fora de um centro? Penso também no público, que tipo de sonoridade e abordagem musical e criativa eles esperam ou desejam? Gosto de tomar isso de uma maneira provocativa para mim e lançar a provocação depois. Há uma postura política em brincar com essa expectativa, em não satisfazê-la propositalmente, dar um tapete para depois puxar esse tapete. E eu acho que a música é a grande puxadora de tapete nas artes, ela brinca e frustra expectativas e é essa força que minha música acaba assumindo de uma maneira bastante natural, porque eu estou numa posição política com essa prática. E é claro que o público é uma dimensão imaginada minha. Por isso, é um campo também estético, tem a ver com a imaginação.
 
Você diz que o que lhe pareceu instigante nas Plásticas Sonoras é o caráter não-domesticado das esculturas. Como você definiria esses instrumentos agora, depois de ter criado a sua peça a partir dessa inspiração?
Eu continuo achando instigante essa característica indomada, uma falta de domesticação e uma não sofisticação, mas que não deve ser entendida como algo pejorativo, ao contrário. Tem a ver com uma inconformação à própria ideia do que seria um instrumento musical dentro de uma tradição europeia, que é de onde vem Smetak, violoncelista de orquestra. Continuo admirando as Plásticas porque acho que, quando você não se conforma, não se deixa domesticar. Há uma capacidade de criação que é movimentada de uma maneira muito forte com essa espécie de insurreição à forma. Porque a forma é sempre uma construção histórica, é sempre uma construção política e não se deixar domesticar eu acho que é uma necessidade dos criadores que estão no sul do mundo. A gente não deve estar à parte, não deve ignorar a construção de uma ideia de forma. Mas a gente não pode se submeter, não podemos ser o animal domesticado dessa tradição que é tão própria do norte do mundo. Temos que assumir nossa posição de periferia dentro desse ciclo criativo e tirar daí a nossa força de criação e o que a gente pode oferecer. É isso o que eu continuo aprendendo com as Plásticas Sonoras, criações que têm esse aspecto selvagem.
 
Escrever “Volvere”, você resumiu, foi uma forma de conhecer melhor Smetak e a si mesmo. Que parte sua foi descoberta nesse aprendizado?
Não sei se foi exatamente uma descoberta, mas o reforço de algumas ideias que já estavam presentes em minhas práticas. Isso acabou acontecendo após o contato intenso com a obra de Smetak durante a criação da peça “Volvere”. Um retorno às forças brutas de criação, o que, em certa medida, quer dizer também um afastamento ou uma posição crítica em relação às noções domesticadas de forma, de coerência formal ou de sofisticação técnica/estética. Um movimento de criação que acontece ao longo de uma série de traços e fios em comunicação incessante com os traços e fios que compõem a malha do lugar onde vivo e onde trabalho.