Parado é Suspeito
Salvador

Movimento I, Parado é Suspeito

paradosuspeito © Lara Carvalho
Em dezembro de 2016, o Goethe-Institut Salvador-Bahia acolheu o Coletivo DMV22, vindo de São Paulo, pela primeira vez em Salvador, para apresentar o espetáculo de dança “Movimento I, Parado é Suspeito” no teatro do instituto, onde também realizou uma oficina baseada no processo criativo da obra. A montagem, que tem como ponto de partida a frase “Negro parado é suspeito, negro correndo é ladrão”, instigou a reflexão de Val Souza, performer e mestranda em Dança, autora do texto que se segue.
 
Negro parado é suspeito, negro correndo é ladrão…
 
Qual jovem negro periférico nunca ouviu a seguinte frase: negro parado é suspeito, negro correndo é ladrão? Muitas vezes, esta frase, recorrente entre as conversas, surgia como um conselho e preocupação vinda dos mais velhos. Pois é a partir deste imaginário bem real da vida dos corpos negros que surge o ponto de partida para a criação coreográfica do Coletivo DMV22.
 
Formado por Denilson Oliveira, Lenna Bahule, Mário Lopes e Paulo Monarco, o coletivo de São Paulo apresentou no dia 14 de dezembro de 2016 o espetáculo “Movimento I, Parado é Suspeito”, no Teatro do Goethe-Institut Salvador-Bahia/ICBA.
 
Inicio essa nossa conversa ressaltando a potência dos corpos negros invisíveis na sociedade e que aqui são a potência da cena. “Movimento I, Parado é Suspeito” nos transporta para as frequentes cenas de violência endereçadas aos corpos negros que são veiculadas sem restrição todos os dias pelos jornais como aperitivo nas casas e mesas brasileiras. Para eles, nossos corpos misturados ao sangue e à covardia violenta são o prato perfeito para o almoço.
 
Fugindo da literalidade e com uma construção cênica que nega as obviedades do que se espera de um espetáculo que trate das questões do negro na contemporaneidade, “Movimento I” constrói uma narrativa a partir das dramaturgias de vidas negras marcadas pela violência, massacre e crueldade. Essa estética não se engessa num modo de fazer exotizado, folclorizado do corpo negro na diáspora e/ou uma arte negra, ao contrário: propõe uma conversa, um diálogo com os trânsitos entre Brasil e África e as rotas atlânticas dos corpos negros espalhados pelo oceano, buscando as narrativas dos sujeitos como contadores de suas próprias histórias.
 
É uma troca de experiências que nos ligam para além mar. “Movimento I” busca na história dos corpos negros a referência nos modos de fazer para a linguagem da dança. Longe de ser uma série de passos ensaiados ou coreografados repetidas vezes, a trama é um discurso da nossa pele marcada pelo abuso, pelos olhares e toques nada sutis.
 
A todo momento, a combinação dos elementos da música, imagem, sonoridades e dos corpos ali postos nos transporta para uma realidade nada metafórica, onde os nossos corpos cotidianamente apagados, corpos que magnetizam balas e entendidos como matáveis, provocam uma verdadeira pane no nosso sistema de entendimento.
 
Longe de mim ser uma spoiller,ou estraga prazeres, mas preciso adiantar que este espetáculo vai te deixar preso na cadeira por mais tempo que o final de temporada de qualquer série do Netflix. Fazendo uso dos signos sonoros, corporais e vocais, o espetáculo é um banho de criatividade e experimentação. A voz estridente, aguda e angustiante de Lena Bahule é quase que um pedido de socorro contra o ataque dos holofotes das viaturas policiais que iluminam a calada da noite nas ruas das periferias brasileiras, estes representados por um auspicioso jogo de luz. E aqui gostaria de parafrasear o rapper Emicida quando diz que o “táxi não para, mas a viatura policial para”. Seriam elas (as viaturas) o carro abre-alas do IML? Por fim, a nervosa e agressiva bateria de Denilson causa medo no espectador e dá a sensação de tiros disparados por armas de fogo, sempre endereçados aos corpos negros, aqui representados por Mário, a todo o tempo correndo e tentando escapar das chamadas balas perdidas.
 
Essa movimentação incansável é a necessidade do grito de um corpo em movimento, não como fuga, mas caminhando, buscando um lugar. Através de signos, o Coletivo DMV22 traz para a cena a carne barata estendida no chão, o medo do abate e a esquizofrenia de corpos que não podem falar.
 
A montagem da companhia paulistana desafia nosso entendimento dos modos de comunicar, fazer e produzir dança, compondo uma maneira de pensar que entenda esse corpo negro como linguagem. Se o racismo insiste em nos apagar e nos impossibilita de sermos sujeitos e efetivarmos nossa existência, o Coletivo DMV22, através do espetáculo, declara uma verdadeira guerra à antinegritude.
 
O espetáculo coloca os espectadores dentro da cena, querendo desafiá-los para que sintam a mesma angústia da perseguição e da realidade desconfortante de ter um corpo negro na afrodiáspora brasileira. A luz apontada para aquele corpo negro, os disparos, os gritos.
 
Ufa, a luz se acendeu! O teatro aplaudiu de pé e eu saio cansada, com a sensação de ter percorrido uma maratona. E será que não percorro todos os dias? Minhas pernas doem, meu coração está acelerado e eu ainda nem entendi ao certo o que se passou na sala do teatro do ICBA.
 
Assim como diriam meus contemporâneos do Racionais MC’s: “Tem que acreditar. Desde cedo a mãe da gente fala assim: filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor. Aí passados alguns anos eu pensei, como fazer duas vezes melhor se você tá pelo menos cem vezes atrasado? Pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses, por tudo que aconteceu. Duas vezes melhor como? Ou melhora ou ser o melhor ou pior de uma vez. Sempre foi assim, você vai escolher o que tiver mais perto de você. O que tiver dentro da sua realidade. Você vai ser duas vezes melhor como? Quem inventou isso aí? Quem foi o pilantra que inventou isso aí? ACORDA PRA VIDA, RAPAZ!!!”.
 
Parece ser isso mesmo. Eles tentam nos matar e nós seguimos conquistando e construindo outras narrativas. E como diz o provérbio africano, “eles pensavam que nos enterrando iam nos matar, mal sabiam eles que nós somos sementes”.
 
Val Souza
performer e mestranda em Dança
 
Este texto crítico-reflexivo é uma publicação especial feita com consentimento da autora. A reprodução parcial ou total deve ter autorização da mesma.
As opiniões expressas não necessariamente refletem o posicionamento do Goethe-Institut.