Para o artista José Alejandro Restrepo, “as forças da colonização não são visíveis apenas na violência física e na devastação. Também há lutas silenciosas que se concentraram no mundo da percepção e das formas de representar”. Ao passar por Berlim com duas obras na mostra “A natureza das coisas”, o artista conversou com a Revista Humboldt.
Pioneiro da videoarte colombiana, José Alejandro Restrepo trafega por um vasto repertório temático, que engloba assuntos como religião, crenças populares, história, política, construção de narrativas e manipulação dos fatos. Em ensaio para o catálogo Transhistórias. História e mito na obra de José Alejandro Restrepo, o crítico de arte brasileiro Paulo Herkenhoff já escrevia em 2001 que Restrepo tem uma “capacidade de devorar e processar sentidos, dominá-los e dar a eles nova direção e substância” em um “modo antropofágico de metabolização iconológica”.Tal diversidade de assuntos, traduzida pelo olhar arguto deste artista visual colombiano, está presente em obras como O crocodilo de Humboldt não é o crocodilo de Hegel e O passo de Quindío II. Produzidas na década de 1990, as obras fazem parte da coletiva A natureza das coisas: Humboldt, idas e vindas, que passou em 2019 por Bogotá e a seguir por Berlim, integrando na capital alemã o evento Humboldt: 250 anos e ainda jovem!
Para criar O crocodilo de Humboldt não é o crocodilo de Hegel (1994), Restrepo partiu de uma divergência entre dois intelectuais alemães, o filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel e o naturalista Alexander von Humboldt. Por meio desse trabalho, o artista busca questionar as concepções e narrativas criadas na Europa em relação ao Novo Mundo, taxado então de exótico e selvagem. “Assim como este, há muitos exemplos de como o conhecimento é um despojo político muito importante. O tamanho do crocodilo não é nem o de Humboldt nem o de Hegel. O que realmente importa é que a representação se impõe como documento da verdade”, diz o artista em entrevista.
Restrepo debruçou-se entre 1990 e 2000 sobre registros escritos e imagéticos dos viajantes europeus que visitaram o continente americano no século 19. Dessa safra emergiu também O passo de Quindío I (1992), videoinstalação que o artista realizou após ler os diários de Humboldt, onde refaz os passos do naturalista alemão e discute os limites entre realidade e narrativa.
A obra se desdobrou em O passo de Quindío II (1998), exposto em A natureza das coisas: Humboldt, idas e vindas. “Meu trabalho esteve focado no momento em se aproximar de formas e forças da colonização que não ocorrem apenas através da violência física ou da devastação. Também há lutas silenciosas que se concentraram no mundo de percepção e das formas de representar”, explica Restrepo. Leia a seguir a íntegra da entrevista.
José Alejandro Restrepo El cocodrilo de Humboldt no es el cocodrilo de Hegel. A natureza das coisas. Fórum Humboldt, Berlim, 2019.
| Foto: David von Becker
Na exposição, seu trabalho “O crocodilo de Humboldt…” está inserida no bloco “Transposições da paisagem europeia sobre a natureza americana”. Poderia falar sobre sua obra nesse contexto?Um dos aspectos fundamentais do legado de Humboldt são os mapas. Eles são um exemplo claro dessa transposição. Fazer mapas, estabelecer topografias é uma maneira de compreender “espacializando”. No entanto, os mapas não são neutros, nem respondem a sociedades filantrópicas geográficas, nem a viajantes audazes. Fortes interesses econômicos ficavam claros desde o início: ciência, moral e política unidas na invenção do país e na formalização de suas formas de representação para a configuração do Estado e da nação. A geografia é uma arma de guerra não apenas para dominar a natureza. Ela é uma ferramenta estratégica de primeira ordem para a apropriação.
Como surgiu a ideia de produzir a obra “O crocodilo de Humboldt não é o crocodilo de Hegel” e quais discussões você quis levantar por meio dela? Essas discussões continuam atuais?
Muitos dos confrontos e resistências entre colonos e colonizadores acontecem em níveis sutis não tão evidentes: os discursos e as representações, por exemplo. Nesta obra, uma discussão de pouca importância entre Hegel e Humboldt sobre o verdadeiro tamanho dos crocodilos (resenhada e comentada pelo filósofo Carlos B. Gutierrez) passa despercebida, mas revela os atritos e as contradições entre diferentes formas de se ver e interpretar. O interessante é perceber, até os dias de hoje, quem impõe sua visão de mundo no final. “Assim como este, há muitos exemplos de como o conhecimento é um despojo político muito importante. O tamanho do crocodilo não é nem o de Humboldt nem o de Hegel. O que realmente importa é que a representação se impõe como documento da verdade”.
Há um legado de Humboldt na arte contemporânea sul-americana? Se sim, de que forma ele se manifesta?
Acho interessante retomar criticamente certas viagens e viajantes. Também é interessante abordar os viajantes atípicos e paradoxais: os que nunca conseguem partir, os que viajam in situ, os que chegam no lugar errado, os que viajam muito contra a vontade, os que ficam na metade do caminho, os que nunca encontram o caminho de volta ou os que não querem voltar nunca mais. Não é preciso entrar na selva (no que sobra dela) ou buscar a paisagem inédita (que ainda subsiste). Na cidade, há circuitos atípicos desse tipo: passadiços e passagens secretas, zonas proibidas, becos sem saída, ruas de sentido único invertido, cruzamentos inesperados, rotundas sem fim… Na floresta, como na cidade, perder-se exige arte e rigor. Sagas, reflexões, experiências que exigem força ao final de tanto cansaço e de tanto risco inútil, testemunhos de uma complexidade subjacente ao simples ato antropológico do deslocamento.
Outro trabalho apresentado na exposição é “O passo de Quindío II" (1998), desdobramento de “O passo de Quindío I” (1992), onde você refaz o trajeto de Humboldt pela região de Quindío, na Colômbia. O que você aprendeu com esta obra?
Em 1992, percorri pessoalmente algumas das rotas que Humboldt fez, vendo e registrando o que ele supostamente mencionou. Experimentando o caminhar como maneira de ver e de registrar. Meu trabalho estava focado em aproximar de formas e forças da colonização, que não ocorrem apenas através da violência física ou da devastação. Também há lutas silenciosas que se concentraram no mundo de percepção e das formas de representar. O caminhar funciona como um ato de enunciação: apropriação de topografias, concretização de espaços e relações entre posições. No século 19, os viajantes vieram às centenas: cientistas humanistas, enviados dos impérios coloniais, aventureiros perdidos… As trajetórias, as intensidades, as maneiras de viajar variam segundo o viajante, mas, em qualquer de suas modalidades, as crônicas que deixaram constituem documentos fascinantes não apenas do que viram e representaram (muito do que já não existe mais), mas também como reflexo eloquente das limitações e preconceitos que fazem do olhar e do representar uma questão ideológica e de poder.
José Alejandro Restrepo é um dos artistas contemporâneos mais importantes da América Latina. Sua obra inclui vídeos de um canal, videoinstalações e performances em vídeo que abordam os momentos “não oficiais” da história da Colômbia.
Outubro de 2019