Alemanha   Na armadilha: o coronavírus e o novo medo do outro

 Foto: Pedro Hamdan

Eu andava de bicicleta com um reboque em uma ruela estreita. De repente, aquela mulher estava parada à minha frente e percebi: ela está com medo.

Caímos em uma armadilha. A mulher e eu. Ela tem um rosto pequeno. Uma máscara grande sobre a boca. Olhos inquietos. Usa luvas de borracha. A mulher está com medo.

Estamos paradas, uma diante da outra, em uma ruela. Duas figuras de um jogo, que não podem mais recuar nem avançar. A ruela é um atalho, de apenas um metro de largura, pelo qual se chega mais rapidamente ao supermercado. A mulher andou de cima até o meio da ruela. Eu, de bicicleta, entrei pelo lado de baixo. Atrás de mim, preso à bicicleta, um grande reboque com uma caixa cheia de garrafas. Só levantei os olhos quando já estava diante dela, no meio do caminho. Tarde demais. Perto demais. Estamos separadas por cerca de um metro. Se quisermos passar uma pela outra, teremos de nos aproximar. É o fim. Sinto que é o fim. Ela vê o fim em mim.

Não conseguimos manter a distância de segurança de um metro e meio. É como se eu fosse um rio. Ela não chegará ao outro lado sem se molhar. Por um breve instante, temos de dividir o mesmo espaço, respirar o mesmo ar. E, no entanto, é tão natural se desviar de um ser humano quanto de um carro em movimento. Como se a existência do outro não representasse a possibilidade de um contágio, mas sim a certeza da doença, um perigo.

Ainda não me habituei ao fato de as pessoas se desviarem de mim. Sinto uma pontada quando elas aumentam a distância em encontros na calçada. Então as cumprimento amistosamente como para lhes mostrar: mas nós estamos próximos, ora, nós todos somos, de um modo ou de outro, parte de uma mesma coisa.

Sinto que a mulher pensa no que fazer: se vai voltar, se será necessário retornar pela ruela inteira para a rua de onde veio para não precisar passar por mim. Ou se eu darei meia volta, deixarei a ruela livre para que ela possa seguir adiante. Por algo que não é dito, algo mudo, fica claro que sou eu que devo agir. Que nosso movimento agora depende de mim.

E de repente fico triste. Por um breve instante, tenho vontade de chorar. Aqui, na rua, uma melancolia de resto inconsciente se adensa. Acerca do medo internalizado que sentimos uns dos outros na época do vírus. Que não é melhor uns com os outros, mas sim sem os outros.

A mulher espera, está simplesmente parada ali. Eu teria direito ao mesmo medo que ela. Sei tão pouco sobre sua saúde ou sua doença quanto ela sabe sobre mim. Temo apenas, porém, seu olhar de medo, medo de mim como ser humano, no qual desapareço como pessoa.

Algo precisa acontecer. Com o reboque, no entanto, não consigo fazer a bicicleta dar meia volta. A única coisa que eu poderia fazer, seria empurrar a bicicleta vagarosamente de ré, e assim permitir que a mulher avance aos poucos. Mas a bicicleta é difícil de manejar. É complicado empurrá-la de volta por um trecho tão longo, sem que o reboque vire e trave. Também sinto que não quero me afastar desse jeito. Será que a nossa última chance é realmente a retirada? Abandonar o campo de jogo? Deixar a ruela parece um “game over”. Uma confirmação de que nós, como seres humanos, somos reduzidos, em nossas características, meramente a nosso possível contágio. O resto se foi.

Eu olho para a mulher. De repente, por um breve instante, tudo me parece ser um sonho. Olho de um outro tempo para a cena. O que ela tem ali sobre o rosto e o que usa nas mãos? O que está acontecendo aqui? Por que estacamos? Dois seres humanos, como que congelados, aprisionados em si mesmos. Agora já sinto que me recordarei desta cena. A mulher será como uma imagem no mosaico no qual eu mesma junto meus pedaços.

E então prendo a respiração como se fosse começar a correr. “É bem rápido”, quero gritar. Mas fico em silêncio, não abro a boca, para não amedrontar a mulher, uma simples gotícula da minha boca poderia colocá-la, sob seu ponto de vista, em perigo. Sorrio para ela, piso nos pedais. Passo rapidamente por ela. “Viu como dá”, grita a mulher. E isso soa claro e amistoso. “Viu como dá.” Como se ela nem sequer tivesse sentido medo. Três palavras que soam como um apelo.
 

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