Nos milhares de cartas que escreveu e recebeu, a amizade surge como uma das grandes e palpáveis alegrias na vida de Hannah Arendt. Seus amigos significavam refúgio, alegria e rejuvenescimento.
Warum ich nicht früher schrieb? Also, die Wahrheit ist, dass ich nicht sagen konnte, „mir geht’s gut“.
Em suas obras, Arendt reflete sobre o que significaria “amar o mundo suficientemente a ponto de assumir a responsabilidade por ele”. O pensamento e a ação surgem repetidamente em suas obras, da mesma forma que o desenraizamento, a solidão, o perdão, os começos e o amor pelo mundo. Para Arendt, pensar é um diálogo conosco mesmos, um diálogo fora do campo da visão pública. É privado não porque seja indizível ou confessional, mas porque a inconclusividade, a possibilidade e os começos são suas qualidades; esse tipo de pensamento ao longo da vida não é impulsionado pelo que queremos alcançar ou nos tornar. Ele não tem fim.
Penso na solidão como a superfície de uma gota de água. O ar acima, a superfície abaixo e a luz são cruciais, bem como o mundo e a experiência são a substância de nossos pensamentos; estamos sempre dentro dela, e ela está dentro de nós. Mas, privados dessa superfície, dessa solidão necessária, o movimento do pensamento não vai ter lar.
Lendo as cartas de Arendt, percebe-se também que a solidão não seria possível sem amizades profundas: sem a escolha de acompanhar e ser acompanhado(a) na vida
Estou realmente com muitas saudades de você. Os tempos andam difíceis e deveríamos estar mais próximas.
Du Fu, o grande poeta da dinastia Tang, navegou por esses rios. No século 8, ele e sua família fizeram parte de uma onda de refugiados internos durante uma terrível guerra civil. Seus 1400 poemas tratam de visitas a amigos – bebendo, festejando, passando por períodos de luto, dando abrigo uns aos outros, fornecendo comida e itens de primeira necessidade. É muito claro que, sem esses pontos de luz, nenhuma vida, muito menos a arte, poderia ter sido criada.
Ao ler a correspondência de Arendt e pensar no que ela chamava de suas “viagens involuntárias pelo mundo” – forçada a escapar da Alemanha nazista em 1933, ela fugiu, apátrida e sem documentos, passando por meia dúzia de países e incontáveis quartos temporários, antes de chegar a Nova York em 1942 –, pensei naquele mapa chinês. A terra e o mar são quase indistinguíveis. Há apenas graus de iluminação, aglomerados de luz e pontos isolados.
Os movimentos incessantes e incansáveis de Arendt pela Europa do pós-guerra são impressionantes. As estações não são lugares, mas amigos. Onde quer que estejam, esse é o lugar para onde ela continua sempre voltando
Meu coração está pesado. Será que nos veremos novamente? Nós dois sentimos que ainda temos muito a dizer um ao outro.
Nas extensas cartas disponíveis para um leitor de língua inglesa, Arendt se mostra em todo seu vigor. A voz que unifica As origens do totalitarismo, A condição humana, Homens em tempos sombrios e Eichmann em Jerusalém está aqui em toda sua complexidade, paixão, impaciência, paciência, irreverência, em seu brilhantismo inegável, sua erudição, ternura e em um tom sarcástico que muitas vezes serve para ocultar seu luto.
Talvez por ser romancista, sempre me interessei pela dimensão da pessoa por trás dos livros – pelo que ela deixa de dizer. Às vezes, o escritor por trás é surpreendentemente raso, como se todos os pensamentos e ações fossem, em última instância, direcionados para o exterior, para o autoengrandecimento. Esse não é o caso de Arendt. Volto sempre a seus livros e cartas não para concordar com ela ou para absorver seus pensamentos, mas porque sua companhia me leva a questionar o significado do meu próprio pensamento – me leva a parar e a refletir. Em uma carta de 27 de junho de 1946, Jaspers escreve uma crítica incisiva a um dos ensaios de Arendt (possivelmente As sementes de uma Internacional Fascista):
Há muitas manifestações e observações brilhantes e persuasivas em seu ensaio – sem contar a paixão, que é fundamental nele. Não sei o que sugerir a você. Seria possível articular as conexões de forma mais cautelosa e, portanto, mais poderosa – ou seja, apresentá-las de maneira historicamente mais correta e menos visionária?
A sua definição da política nazista como crime (“culpa criminal”) me parece questionável. Os crimes nazistas, a meu ver, explodem os limites da lei; e é precisamente isso o que constitui sua monstruosidade. Para esses crimes, nenhuma punição é severa o suficiente. Enforcar Göring pode ser essencial, mas é totalmente inadequado.
A carta termina com uma expressão de gratidão surpreendente e alegre, muito ao estilo de Arendt: “Mas agora, quando o senhor discute comigo dessa forma... parece que tenho um chão sólido sob meus pés, como se estivesse de volta ao mundo”.
Se eu fosse continuar, gostaria de escrever sobre o envolvimento de Arendt com os mortos – com poetas, bem como com Rahel Vanhagen e Immanuel Kant – e sobre como ela diz que Jaspers, em sua obra monumental, Grandes filósofos, conversa com Sócrates, Confúcio, Kant, Buda, Nagarjuna, Espinosa e muitos outros: “Ele os tira da ordem cronológica e é como se você estivesse entrando em um enorme palácio onde, em um ou outro canto, você vai encontrar todos eles. Todos são contemporâneos e ele fala com eles e contra eles, às vezes até de forma bastante injusta, como se estivessem ali.”
A amizade, para Arendt e para Jaspers, é um espaço onde nos encontramos e nos ouvimos de verdade, mesmo através do tempo e do espaço, das línguas e das culturas. Esta manhã, abatida pelas minhas próprias mágoas, sentei-me por algum tempo na companhia de Arendt. Quando, pouco depois de uma visita a Jaspers e à sua esposa, Gertrud, Arendt recebe a notícia de que Jaspers está à morte, ela escreve a eles à distância
… e agora eu então sei. Estou aqui sentada pensando em vocês dois e na despedida que está por vir... O que sinto está além do domínio da linguagem – entre outras razões, porque estou tomada pela gratidão por tudo o que vocês me deram. Com amor, Hannah
Março de 2022