O conceito de “Antropoceno” enfatiza o papel do ser humano na transformação do mundo biofísico e na origem dos problemas ambientais globais. No entanto, no caso latino-americano, o conceito parece limitado, por ignorar o papel central das relações de poder e das desigualdades sociais. Seria o conceito alternativo de "Capitaloceno" realmente superior?
Os discursos atuais sobre o que se chama de Antropoceno sublinham o papel que os seres humanos desempenham na transformação histórica do mundo biofísico e na crise ambiental global, gerando assim uma nova era geológica. Há vários debates sobre o início dessa era: ela teria se iniciado com a presença humana no planeta, com a conquista das Américas a partir do século 15, com a industrialização no século 19, ou somente em meados do século 20?A própria noção de Antropoceno vem provocando discussões em torno dos problemas ambientais em escala global. Em consequência disso, ocorreu uma mudança nas ciências humanas e sociais, bem como uma reformulação de seus fundamentos conceituais, metodológicos e políticos: a natureza tornou-se parte das análises históricas e sociais. Essa mudança permite uma incidência direta do conhecimento acadêmico nos contextos de tomada de decisões globais, nacionais ou locais relacionadas a problemas ambientais atuais, bem como aos consequentes conflitos socioambientais relativos às mudanças climáticas, à redução da biodiversidade e aos extrativismos relacionados ao consumo capitalista.
Na América Latina, o debate sobre o Antropoceno não se desenvolve da mesma forma que na Europa ou nos Estados Unidos. Isso pode ser em parte explicado pelo fato de que a noção de Antropoceno está centrada em problemas globais que requerem respostas globais às custas de histórias locais de desapropriação territorial e ambiental. De fato, a noção de Antropoceno poderia ignorar as relações de poder e o caráter específico das desigualdades sociais e das transformações ambientais no contexto latino-americano. Além disso, a narrativa do Antropoceno ignora com frequência outras perspectivas culturais e sistemas de conhecimentos. Esses sistemas e perspectivas apoiam-se em relações diversas entre humanos e não-humanos, em contextos históricos particulares. Na América Latina, é necessário considerar a análise dos processos de extração a partir do período colonial até o século 21 – processos esses que aumentaram as desigualdades socioambientais, respondendo a uma dinâmica econômica particular, ou seja, à lógica do capitalismo que vem gerando transformações globais-locais.
Capitaloceno ou Antropoceno?
Diante disso, é preciso abrir um debate sobre as implicações dos conceitos de “Capitaloceno” e “Antropoceno”. O Capitaloceno surge como uma crítica da noção de Antropoceno, ao considerar que a ação humana é sempre perpassada por relações políticas e econômicas de poder e desigualdades no contexto do capitalismo global. O Capitaloceno ressalta, portanto, como as valorizações econômicas capitalistas de apropriação da natureza e de territórios, e não apenas as ações humanas diretas, são a causa das transformações ambientais.Não obstante, existem também diferentes aproximações ao conceito do Antropoceno que têm origen na América Latina. Algumas perspectivas consideram que o Antropoceno permite fazer um diagnóstico crítico dos efeitos do desenvolvimento e do capitalismo. Outros o veem como uma oportunidade política de repensar as relações sociais a fim de construir novas relações com o ambiente. Especialmente o manifesto Antropoceno en Chile. Hacia un nuevo pacto de convivencia, assinado em 2018 por acadêmicos e ativistas chilenos e de outros lugares do mundo, oferece propostas críticas para repensar os contextos sociais, políticos e ambientais tendo em vista uma nova constituição para o planeta. Esta implica um “pacto de convivência” baseado em diversos princípios. Trata-se de uma proposta de vida comum, reconhecendo a existência de todas as espécies e sua diversidade, bem como de seus modos de viver, pensar e atuar em contextos situados e localizados. Também é um chamado para criar novas possibilidades de ser e de futuros mediante a reorganização da vida coletiva, dos bens comuns e das políticas públicas baseadas na justiça socioambiental, transdisciplinar, na educação, na arte e na espiritualidade. Esse manifesto quer superar os conflitos socioambientais atuais criando um mundo diferente.
Os debates tanto em torno do Antropoceno como do Capitaloceno são uma oportunidade política para repensar a relação do ser humano com a natureza. Eles também permitem abrir diferentes discussões e convocar pessoas de distintas trajetórias, culturas e perspectivas a participar da construção de novas noções e práticas no que diz respeito à natureza, ao Estado, aos direitos de seres humanos e não-humanos. Além disso, eles permitem propor reconfigurações territoriais, ambientais e culturais que acarretem propostas alternativas aos extrativismos e sua relação com os territórios globais-locais, reformulem as relações natureza/cultura e gerem uma mudança profunda nas atuais relações do ser humano com a natureza.
Ora, discursos como os mencionados acima exigem buscar opções tanto individuais como coletivas para repensar o capitalismo e inclusive retomar os princípios filosóficos de relacionamento com o entorno, por exemplo, dos povos indígenas e das sociedades que estabelecem outro tipo de relação não baseada em processos de apropriação econômica da natureza.
A partir de uma perspectiva latino-americana, no que concerne aos modelos do Antropoceno e do Capitaloceno, é preciso examinar as implicações em âmbitos territoriais, ambientais, culturais e de gênero, e na forma como se produzem conhecimentos que incidam nas políticas globais. Isso implica repensar e, de fato, decolonizar a categoria de “natureza” e a forma através da qual se produzem conhecimentos, bem como as relações de poder que perpassam a interação entre seres humanos e não-humanos a fim de repensar a questão ambiental a partir de uma perspectiva plural e diversa.
Abril de 2019