Memória no cinema  “Não falar é esquecer e esquecer é repetir”

marinacamargo_2013 © Marina Camargo, 2019.

A violência é um elemento onipresente nas cinematografias de diversos países latino-americanos. Isso indica que as histórias e identidades, em várias regiões do continente, são mais semelhantes do que podem à primeira vista parecer.

A partir de onde podemos estabelecer as bases de uma identidade latino-americana? Assim como em muitos outros campos, no universo do cinema a distância entre o Brasil, esse “grande irmão diferente”, e seus vizinhos, sempre foi enorme, malgrado esforços pontuais como o do grande crítico José Carlos Avellar (1936-2016), que com seu seminal ensaio A ponte clandestina buscou aproximar o cinema brasileiro de seus contemporâneos de outros países do continente. 

No processo de seleção da mais recente edição do Cine Ceará (dedicada ao cinema “ibero-americano” e não apenas latino-americano), pude perceber, contudo, alguns traços que unem de maneira forte o cinema da região: em filmes oriundos de países com dimensões, geografias, culturas e narrativas históricas tão diferentes quanto são, por exemplo, o Brasil, o Uruguai, a Bolívia, a Guatemala e o México, a onipresente violência parece ser uma linha mestra de contato entre eles. 

Talvez essa onipresença não deixe de ser algo até certo ponto natural, quando pensamos que a violência foi um aspecto fundador daquilo que se convencionou chamar de “descobrimento” em cada um desses países. A partir da chegada dos colonizadores, o genocídio das populações originárias, a sanha exploratória das elites transplantadas da Europa, a radicalização que viria com todo o processo da escravidão e a construção sangrenta das diferentes “independências” ao longo da região foram todos processos de enorme violência que deixaram suas marcas nas narrativas constitutivas da identidade e do imaginário latino-americano. 

Crimes perpetrados por regimes ditatoriais

No entanto, há um traço posterior que unifica ainda mais o cinema latino atual, e ele tem a ver com uma onda mais recente dessa violência: os crimes de Estado praticados em praticamente toda a região a partir dos regimes ditatoriais instaurados ao longo do século 20. Embora não seja difícil perceber o quanto esses regimes estão intrinsecamente ligados à toda condição histórica que veio antes deles (e vários filmes desenham com clareza essa ponte), o fato destes governos terem operado num momento mais recente os tornam particularmente urgentes para o registro audiovisual, especialmente porque são regimes dos quais ainda há resquícios muito vivos (e aqui usamos o termo não apenas no sentido figurado, mas por nos referirmos inclusive a pessoas/personagens, tanto entre aqueles que foram vítimas, quanto entre aqueles que executaram esses crimes de Estado).

De fato, é bastante impressionante, num olhar mais panorâmico, a recorrência das narrativas, tanto documentais quanto ficcionais, acerca das atrocidades dos regimes ditatoriais latino-americanos e suas profundas marcas constitutivas das sociedades atualmente existentes na região. Isso é algo, inclusive, que escapa ao universo apenas da produção latino-americana em si, como comprova o recente documentário do cineasta italiano Nanni Moretti, Santiago, Itália, que retraça o contexto do golpe contra Salvador Allende, em 1973 no Chile, e a maneira como foi criada uma geração de emigrados chilenos na Itália. 

Peru e Guatemala: memórias sufocadas, massacres e desaparecimentos 

Muitos desses filmes realizados por cineastas latino-americanos tornam-se tão mais dolorosos, contudo, porque em grande parte lidam com narrativas pessoais e familiares. No Festival de Cannes de 2019, por exemplo, o cinema latino saiu consagrado com a cobiçada Câmera de Ouro, prêmio concedido ao melhor longa-metragem de um realizador estreante. O longa-metragem vencedor, Nuestras Madres, do guatemalteco Cesar Diaz, remete desde seu título à questão da herança e da perda através de uma trama ficcional que incorpora uma série de atores em seus contextos reais.
 
 

O filme mostra o esforço de pesquisadores e investigadores para encontrar resquícios físicos (como ossadas) e também não-físicos (como as narrativas e histórias sufocadas) de um processo genocida de desaparecimentos e ocultamento da verdade. Trata-se de um contexto tratado igualmente por um poderoso documentário do mesmo país, La asfixia, no qual a realizadora Ana Bustamante parte da sua própria memória sufocada familiar para tentar encontrar os vestígios do pai de quem não guarda praticamente nenhuma memória.
 


Curiosamente esse diálogo entre dois poderosos filmes (um de ficção, outro documentário) também se deu neste ano a partir de um outro país cuja cinematografia, em geral, encontra pouca visibilidade internacional: o Peru. Também em Cannes foi exibido com enorme sucesso o longa de ficção Canción sin nombre, da diretora Melina León, em que histórias também vindouras de seu pai retomam a trajetória que ele confrontou como jornalista ao tentar contar a história de crianças roubadas de suas mães nativas, com o conhecimento do Estado. 
 


O assunto reverbera no documentário La busqueda, em que os diretores Mariano Agudo e Daniel Lagares acompanham personagens oriundos de pequenas comunidades indígenas do interior na busca por reconstituir histórias de massacres e desaparecimentos ao redor de mesmo período histórico, dos anos 1980. 
 

Chile e Brasil: infâncias, paternidades distantes e abortos

Já no Brasil, temos filmes que buscam combinar os registros ficcionais e as lembranças pessoais. Deslembro (2018), por exemplo, parte das memórias de infância de sua diretora Flavia Castro para falar do trauma do retorno do exílio e do reencontro com um país mais imaginado do que conhecido, cheio de armadilhas para a família e para as crianças criadas no exterior.
 
 

O inédito Fico te devendo uma carta sobre o Brasil, de Carolina Benjamin, busca os traços da trajetória do pai da realizadora por seu exílio na Suécia como forma de entender não apenas esse homem que a filha nunca conheceu de verdade, mas principalmente a maneira como essa jornada transformou a avó da diretora, que sempre esteve por perto e foi marcada por um enorme luto ao longo do tempo em que buscou os rastros do filho.
 

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A necessidade da memória e da conclusão do luto, a partir dos traumas do cárcere, vai repercutir de maneira distinta na linha familiar e geracional no documentário chileno (em coprodução com o Brasil) Haydée y el pez volador. A diretora Pachi Bustos acompanha a personagem título que vivenciou uma tragédia diferente das anteriores: o aborto em consequência de violentas torturas quando da sua prisão no momento em que se encontrava grávida. Aqui, de novo, a busca por um fechamento (inclusive no sentido legal, pois o filme acompanha a sua luta por condenar os responsáveis por sua prisão e pelas violências sofridas ali) se torna antes de tudo a libertação possível de um imaginário de alguém que, inclusive simbolicamente em relação ao país, passa o resto da vida assombrada por uma perda que nunca pôde “dizer seu nome” com todas as letras. É importante notar o grande número de mulheres cineastas revirando essas memórias e ausências.

Urgência que aproxima

Se foram aqui citados alguns exemplos de filmes a partir de apenas quatro países, há de se notar que, embora eles sejam tão diferentes e geograficamente distantes dentro de uma mesma região, parecem compartilhar de uma verdadeira “lacuna” comum. São histórias de pais e mães, de avós e de netas, que carregam em nome dos seus países o sentimento de uma enorme injustiça que o Estado nunca assume completamente com todas as suas consequências – e aqui podemos perceber uma proximidade, e ao mesmo tempo completa diferença, da questão da chaga nazista na herança alemã. 

No momento em que o Brasil elege como presidente um aberto apologista da violência de Estado vivenciada tão recentemente, conseguimos entender de maneira profunda o perigo da ignorância e da mitificação histórica oficial para a construção futura desses países. E entendemos mais ainda as origens dessa urgência que parece aproximar tanto estes diferentes “cinemas latinos”: não falar é igual a esquecer; e esquecer é igual a repetir. Muitos dos (e das) cineastas latino-americano(a)s não parecem disposto(a)s a compactuar com esse crime frente ao futuro.

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