Resgate marítimo  Direitos e obrigações

Refugiados salvos em frente à costa da Líbia pela embarcação de resgate “Eleonore”.
Refugiados salvos em frente à costa da Líbia pela embarcação de resgate “Eleonore”. Foto (detalhe): © picture alliance/dpa/Johannes Filous

A cada ano, milhares de pessoas morrem afogadas a caminho de uma suposta liberdade na Europa. As críticas aos que tentam salvá-las são frequentes. Do ponto de vista jurídico, é nosso dever o resgate em emergências no mar? 

Praticamente não se passa uma semana sem que tenhamos um novo relato sobre o destino de pessoas afogadas que queriam alcançar o continente europeu por via marítima. E sempre o salvamento das pessoas naufragadas é acompanhado de críticas. As acusações são de que isso auxiliaria o tráfico humano ou não faria cessar nunca o fluxo de refugiados. Os governos de diversos países recusam-se a abrir seus portos para navios de resgate, forçando alguns deles a navegar sem destino por dias ou semanas, mesmo com pessoas severamente traumatizadas a bordo. As capitãs da ONG Sea-Watch Pia Klemp e Carola Rackete, que nessas alturas já se tornaram mundialmente conhecidas, estiveram extremamente presentes na mídia nos últimos meses. Conversamos com Manfred Nowak, jurista e advogado especializado em direitos humanos, sobre a obrigação, de acordo com o Direito Internacional, de prestar assistência a quem se encontra em situação de emergência no mar.
 
Há o Direito Internacional, os direitos humanos e humanitários, e a lei marítima internacional. Existe algum vácuo jurídico quando o assunto é resgate no mar?

Na minha opinião, não há um vácuo legal. Na Convenção das Nações Unidas sobre a lei marítima está estipulado que é uma obrigação ajudar aqueles que estiverem em situação de risco no mar. Qualquer um que aviste alguém em perigo no mar tem a obrigação de prestar assistência. Em segundo lugar, o Estado tem, por princípio, obrigação de salvaguardar vidas, sendo que isso diz respeito aos direitos humanos. Essa obrigação do Estado, no entanto, não é evidentemente absoluta. Nenhum Estado consegue evitar por completo que pessoas se afoguem ou sejam mortas quando se envolvem em algum delito ou acidente de trânsito, por exemplo. Quando, no entanto, o Estado italiano diz que barcos que carregam náufragos e enfermos não estão autorizados a atracar em portos italianos, isso é, a meu ver, uma violação do seu dever de proteger o direito à vida.
 
Em que se baseiam então os debates, sob um ponto de vista estritamente jurídico?

O argumento de alguns governos é de que não se trata de náufragos comuns. Em si, refugiados têm direito de buscar asilo em outro país, mas migrantes não têm direito ilimitado de adentrar outro território. Ou seja, é direito soberano de um Estado decidir quem ele quer aceitar como migrante. Aqueles que chegam via Líbia, por exemplo, são essencialmente migrantes africanos. Sob esse ponto de vista, eles não são náufragos comuns, posto que traficantes os colocaram deliberadamente naquela situação. É possível também argumentar que a Europa está se tornando cada vez mais um destino da migração irregular, que acaba sendo incentivada pelo tráfico humano. Se Organizações Não Governamentais (ONGs) passarem a resgatar todas as pessoas colocadas em perigo no mar pelos traficantes, elas estarão efetivamente facilitando suas atividades ilegais. Esse é, portanto, um argumento político, mas ele não muda a situação legal.
Manfred Nowak é jurista e advogado especializado em direitos humanos. De 2004 a 2010 foi o relator especial das Nações Unidas sobre tortura. Atualmente é secretário-geral do Centro Europeu Interuniversitário de Direitos Humanos e professor de direitos humanos internacionais. Desde 2016 tem sido o especialista independente encarregado dos estudos globais das Nações Unidas sobre crianças que tiveram sua liberdade roubada. Além disso, foi um dos mentores da fundação do Instituto Ludwig Boltzmann de Direitos Humanos. Manfred Nowak é jurista e advogado especializado em direitos humanos. De 2004 a 2010 foi o relator especial das Nações Unidas sobre tortura. Atualmente é secretário-geral do Centro Europeu Interuniversitário de Direitos Humanos e professor de direitos humanos internacionais. Desde 2016 tem sido o especialista independente encarregado dos estudos globais das Nações Unidas sobre crianças que tiveram sua liberdade roubada. Além disso, foi um dos mentores da fundação do Instituto Ludwig Boltzmann de Direitos Humanos. | Foto (detalhe): © picture alliance/Gilbert Novy/ KURIER/picturedesk.com Antes havia uma guarda costeira escalada para resgates no mar, o que já não existe mais. Esse recuo é legítimo do ponto de vista jurídico?

Legalmente nada mudou e as normas continuam as mesmas. No entanto, a obrigação do Estado de proteger não é absoluta, mas relativa. O quanto se pode esperar de um Estado? Quão proativo o Estado deve ser? Cada embarcação individual deve intervir. Mas se eu não enviar nenhuma embarcação e dificultar o trabalho de resgate dos barcos das ONGs, estarei fechando meus olhos, mas não necessariamente violando direitos humanos.
 
Vamos tomar Carola Rackete como um exemplo concreto. Ela desafiou a recusa das autoridades italianas em autorizar seu atracamento.

Legalmente, a situação é inequívoca. Carola Rackete violou uma norma legal italiana – a diretriz do ministro do Interior, para ser mais preciso – em um ato de desobediência civil. No entanto, essa diretriz era uma violação clara da proteção do direito à vida por parte do governo italiano. Rackete ignorou uma diretriz italiana, mas sua ação estava acobertada pelo Direito Internacional.
 
Alemanha, França, Itália e Malta concordaram agora com uma proposta emergencial conjunta. A adesão é voluntária, no entanto. Existe algum mecanismo legal para exigir a adesão?

Não, não há base legal para exigir a adesão a este acordo emergencial. Várias tentativas já foram feitas. A União Europeia já aprovou a implementação de um coeficiente de distribuição. Embora essa tenha sido uma decisão compulsória, os Estados de Visegrado (República Tcheca, Polônia, Hungria e Eslováquia) se recusaram a cooperar. Nesse caso, procedimentos de infração poderiam ter sido iniciados perante a Corte de Justiça da UE, mas isso foi deixado de lado por razões políticas. Na forma como esse acordo emergencial se coloca agora, a adesão é um compromisso voluntário por parte dos Estados que você mencionou e não um acordo obrigatório.

Violação da lei italiana, mas não da lei internacional: a capitã do Sea Watch 3, Carola Rackete, com oficiais da polícia italiana depois de sua chegada a Lampedusa Violação da lei italiana, mas não da lei internacional: a capitã do Sea Watch 3, Carola Rackete, com oficiais da polícia italiana depois de sua chegada a Lampedusa | Foto (detalhe): © picture alliance/Reuters/Guglielmo Mangiapane Por que tal acordo obrigatório fracassou?

Desde 1999 e do Tratado de Amsterdã, a UE vem trabalhando em uma política comum de asilo e migração, porque, com fronteiras internas abolidas, a proteção das fronteiras externas não pode mais ser deixada a cargo de cada Estado individualmente. O mesmo se dá no que diz respeito às questões de migração e asilo. Embora várias regulações e diretivas tenham sido criadas para harmonizar o direito de asilo e migração, os ministros da Justiça e do Interior da UE bloquearam essa padronização. Em si, o problema só pode ser resolvido de forma conjunta, idealmente através de um departamento comum de asilo e migração. A forma como os refugiados e migrantes seriam então divididos entre os países permanece uma questão meramente interna da UE e, portanto, uma questão política – que os Estados de Visegrado estão bloqueando. Assim foi sendo criado um impasse. Espero que a nova comissão trate disso com mais firmeza. Caso contrário, a solução para o problema vai ser apenas adiada.
 
Tem-se a impressão de que a UE, às vezes, é um obstáculo para si mesma.

A UE não é um obstáculo para si mesma, mas sim um projeto de longo prazo de integração europeia. Inicialmente, um projeto de integração econômica através da criação de um mercado interno comum. Desde o Tratado de Maastricht e da criação da União Europeia, a meta é também a perpetuação da integração política, tendo em vista uma espécie de Estados Unidos da Europa. Infelizmente, há Estados dentro da UE cuja política está cada vez mais nacionalista. São esses Estados que se colocam como obstáculo para uma maior integração da UE e não a própria UE.
 
Qual é a posição legal desses Estados que se recusam a cooperar?

Todos os Estados-membros da UE têm que seguir as diretrizes e decretos para asilo – essa é a legislação secundária do bloco. Teoricamente, eles poderiam ser levados à Corte por quebra de contrato, mas, no momento, tem-se tentado resolver essas questões sensíveis no nível político.
 
No que diz respeito ao envio de migrantes de volta para a Líbia: qual é a base legal disso e quais são as preocupações legais?

Tendo em mente as condições degradantes nos campos de refugiados da Líbia, enviar pessoas de volta para lá é uma violação da proibição de repatriação. Podemos acusar um Estado de tratamento desumano não apenas quando ele permite que as pessoas sejam agredidas, mas também quando envia pessoas para um país onde elas estariam sob ameaça de tratamento desumano. Esse é absolutamente o caso da Líbia. A Corte Europeia de Justiça determinou que repatriar migrantes para lá é ilegal e, portanto, uma violação dos direitos humanos.

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