Séries alemãs  Oktoberfest – sangue e cerveja

Still da série “Oktoberfest – sangue e cerveja”
Still da série “Oktoberfest – sangue e cerveja” © BR/ARD Degeto/MDR/WDR/Zeitsprung. Foto: Dusan Martincek

A mentalidade um tanto quanto rude dos bávaros rendeu à população do estado uma reputação pouco lisonjeira no resto da Alemanha. No país, os habitantes da Baviera são conhecidos como um povo independente (e um tanto cabeça-dura). No exterior, servem muitas vezes como a caricatura carregada de clichês do “alemão” estereotipado. Não é segredo, porém, que muitos aficionados por cerveja no mundo sentem um carinho especial por esta região bastante distinta da Alemanha, famosa por seus transbordantes canecões de chope.

Nos EUA, por exemplo, a demanda por cervejas artesanais locais não dá sinais de enfraquecimento, a Oktoberfest está sendo agora celebrada em todo lado como uma ode “kitsch” àquele estado do sul da Alemanha, e os biergartens estão se alastrando loucamente, na tentativa de oferecer a receita perfeita de aconchego bávaro, capaz de transformar familiares e desconhecidos em uma única tribo da cerveja. Mas a Baviera também produziu sua boa parcela de cineastas, incluindo seu renomado enfant terrible Rainer Werner Fassbinder.

Opulência bávara em atmosfera de ímpedo shakespeariano

Ronny Schalk, o mais recente herdeiro desta tradição cinematográfica, agora domina o cenário da TV na Alemanha. Como um dos roteiristas de Dark, o rei do streaming que dominou de 2017 a 2020, Schalk revelou o potencial comercial de produções estrangeiras na mais estadunidense das plataformas de streaming, a Netflix. E a Netflix atentou para isso. Com Oktoberfest – sangue e cerveja, Schalk dá o salto da ficção científica distópica para o drama histórico (embora os tons macabros permaneçam). Agora na Netflix, esta nova série de seis episódios ostenta valores de produção impressionantemente altos, que manterão os espectadores grudados na tela.
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Os lúpulos da ira

O título da série já conta tudo: o cenário (Munique), o catalisador dramático (a cerveja) e o gênero, com seu aceno descarado a Quentin Tarantino. Embora a série certamente tome certas liberdades em relação à história, o público rapidamente será abocanhado por essa narrativa que envolve a Alemanha dos primórdios do século 20, um país à beira de um tumulto. Há muito para engolir (e digerir) em Oktoberfest – sangue e cerveja, com suas representações da industrialização rápida, da liberalização dos costumes, do declínio da influência da burguesia frente à ascensão de magnatas conspiradores e à luta das classes mais baixas diante da opressão capitalista.


Standfoto aus der Serie "Oktoberfest 1900" Standfoto aus der Serie "Oktoberfest 1900" | © BR/ARD Degeto/MDR/WDR/Zeitsprung. Foto: Dusan Martincek A série começa em Munique com a chegada de Curt Prank (uma atuação sólida de Mišel Matičević, o astuto proprietário do Moka Efti, na série Babylon Berlin), que tem a intenção de perturbar o cartel local da cerveja, composto por cervejarias cujo monopólio permaneceu intocado desde a fundação da Oktoberfest – “o festival do povo” – em 1810. Este recém-chegado não é exatamente bem recebido pela sociedade bávara. Os altos escalões de Munique não têm nada além de desprezo por Prank, que descaradamente ostenta seu dinheiro, suas botas de couro e sua linda filha, Clara (Mercedes Müller), tentando consolidar seus negócios ao casá-la com um rico pretendente local. Prank está empenhado em dar vida à sua grande visão: uma enorme tenda da Oktoberfest, grande o suficiente para abrigar seis mil foliões bebendo cerveja ao som de uma estrondosa música brega, protegidos tanto da chuva quanto dos curiosos olhos bávaros.
  Prank enfrenta obstáculos a cada momento, de poderosos chefões da cerveja a cervejarias de pequena escala e famílias trabalhadoras como os Hoflinger, cuja má sorte e obstinação mais parecem ter saído das páginas de Romeu e Julieta. Clara, a filha rebelde de Prank, tem seus próprios projetos, impulsionados em parte por sua sexualidade que vem à tona. Em vez de concordar com as exigências do pai, ela volta seus olhos (entre outras coisas) para Ronan (Klaus Steinbacher), o impetuoso filho mais velho dos Hoflinger. Contando com a ajuda de sua nova governanta, Colina (Brigitte Hobmeier, que facilmente poderia representar a atriz Hanna Schygulla em uma cinebiografia sobre Fassbinder), Clara segue em um relacionamento – e em uma narrativa – que mistura sexo, maternidade, assassinato e mentiras (em um encontro singelo digno de Shakespeare, nem Clara nem Ronan sabem que são membros de famílias rivais).
Still da série “Oktoberfest, sangue e cerveja” Still da série “Oktoberfest, sangue e cerveja” | © BR/ARD Degeto/MDR/WDR/Zeitsprung , Foto:Dusan Martincek

Barris de cerveja e lutas de classe

Enquanto obra de ficção histórica, se não de precisão histórica, a série pode alegar ser baseada em fatos reais. O personagem Carl Prank é inspirado sobretudo em Georg Lang, um nativo de Nurembergue cujas botas lhe renderam o apelido de “Crocodilo Lang”. Dito isso, esta peça de época é ainda mais intrigante por seu retrato das turbulências socioeconômicas daquele período.
 
Embora a Covid-19 tenha freado a Oktoberfest de Munique em 2020, nos anos anteriores a festa atraiu multidões de mais de 6 milhões de pessoas, com 7,5 milhões de litros de cerveja servidos apenas no ano de 2018. Este evento espetacular é impulsionado por interesses comerciais poderosos, e Oktoberfest: sangue e cerveja é sua convincente história de origem: o conluio entre comerciantes ricos, a destruição de pequenos empresários e a corrida por lucros à custa dos trabalhadores pobres. Em algum momento, a série lembra Lisistrata, a comédia grega de Aristófanes, na qual as mulheres colocam um fim à guerra ao fazerem uma “greve sexual”. Neste caso, porém, é a cerveja, não o sexo, que é negada, quando as garçonetes se recusam a servir os clientes até que recebam um aumento salarial. Neste momento, Gerdi, a matriarca Hoflinger, que oculta um passado sombrio, tem seus momentos de Rosa Luxemburgo.

Still da série “Oktoberfest, sangue e cerveja” Still da série “Oktoberfest, sangue e cerveja” | © BR/ARD Degeto/MDR/WDR/Zeitsprung , Foto:Dusan Martincek

O sangue é mais espesso que a cerveja

Martina Gedeck (A vida dos outros, O complexo Baader Meinhof) tem uma atuação intensa como Gerdi Hoflinger, iluminando a tela a cada virada da história. Infelizmente, ainda que evoque tons de Mãe Coragem, Gerdi parece incapaz de afastar as forças malignas que ameaçam sua família. Enquanto isso, a relação entre seu imprudente filho Ronan e seu doce irmão mais novo, Ludwig (o excelente Markus Krojer), serve para incorporar o conflito entre ambição empreendedora e aspiração artística. Ludwig também atua como guia do espectador através do submundo proibido de Munique, precursora da Berlim dos anos 1920, uma cidade para a qual os moradores de Munique sonham em fugir.
 
Mas o verdadeiro apelo de Oktoberfest – sangue e cerveja está no embate entre as tradições carregadas pelo tempo e as promessas do futuro, forçosamente introduzidas com astúcia, traição e comportamentos criminosos. Esta reinvenção da Baviera como um campo de batalha encharcado de cerveja vai impressionar os espectadores com suas artimanhas tecnológicas, abundância (nada menos que quatro mil figurantes) e o comportamento ultrajante de seus protagonistas monstruosos de uma era passada. Uma era não muito distante da nossa.


“Oktoberfest – sangue e cerveja” é uma produção da Zeitsprung Pictures em cooperação com a Violet Pictures e com a Maya Production, em coprodução com a BR (coordenação), a ARD Degeto, a MDR e a WDR para a ARD, financiada pela Fundação de Fomento ao Cinema da Baviera, pela Fundação de Cinema e Mídia da Renânia do Norte-Vestfália, pelo German Motion Picture Fund e pelo Czech Film Fund. Os produtores são Michael Souvignier e Till Derenbach (Zeitsprung Pictures), Alexis von Wittgenstein (Violet Pictures) e Felix von Poser.

A série é dirigida por Hannu Salonen. Os roteiristas são Ronny Schalk e Christian Limmer, que partiram de um argumento de Alexis von Wittgenstein. Nos papéis principais estão: Mišel Matičević, Martina Gedeck, Francis Fulton-Smith, Klaus Steinbacher, Mercedes Müller, Brigitte Hobmeier, Maximilian Brückner, Markus Krojer, Martin Feifel, Michael Kranz e Vladimir Burlakov.

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