Política latino-americana  “O grotesco tornou-se uma estratégia para chamar atenção”

 “O Poder do semi- árido”, 2024. Tinta acrílica e marcador permanente sobre linho cru.
“O Poder do semi- árido”, 2024. Tinta acrílica e marcador permanente sobre linho cru. © Aislan Pankararu. Foto: Ricardo Prado

O jornalista argentino Eliezer Budasoff analisa como o grotesco perpassa a política latino-americana: como ferramenta de poder, estratégia de comunicação e forma de se conectar com o mal-estar social.

Por que é interessante para você falar sobre o grotesco em relação à América Latina?

Acredito que uma certa tendência de ver o grotesco me serviu, desde criança, para poder rir dos traços absurdos da realidade e amortecer suas consequências. O grotesco mantém uma espécie de equilíbrio instável entre o cômico e o trágico, e sinto que essa é, às vezes, a realidade da América Latina: uma sucessão de momentos grotescos.

Onde você percebia o grotesco quando criança?

Sou do interior da Argentina, de uma cidade chamada Paraná, e comecei a fazer jornalismo aos 19 anos. Acabei criando sátira política, porque era muito fácil ver o caricato na vida política local. Era como uma versão classe C da realidade, como se todos estivessem representando a si mesmos com um orçamento baixo. Lembro-me de momentos absurdos, como quando um candidato foi atacado a pedradas em um bairro e o governador inventou um atentado a seu carro para ofuscar a notícia. Ele mandou atirar em seu carro estacionado e inventou que havia sido perseguido. Tudo parecia ridículo e transparente. E isso se tornou uma fórmula global.

O grotesco ajuda a entender o poder na América Latina?

Sim, se pensarmos no grotesco como uma versão deformada da realidade, que permite que você veja suas costuras a partir do exagero de alguns de seus traços. Acho que isso se aplica totalmente à política na América Latina.

Como o grotesco é usado na política da região?

O grotesco tornou-se uma estratégia para chamar atenção. Penso com frequência em um episódio do programa do jornalista estadunidense Ezra Klein, onde se analisa como os republicanos nos Estados Unidos entenderam que qualquer tipo de atenção era um ganho, mesmo sendo uma atenção negativa, pois o objetivo era obter e manter a atenção, que hoje é um capital em si. Fala-se de “ecossistemas de atenção”. É cada vez mais difícil discernir se um político está conscientemente agindo de forma grotesca para atrair atenção ou se está simplesmente revelando quem é. O problema é que não é mais fácil rir disso. Quando usado como um artifício deliberado, o grotesco perde seu efeito libertador. O que ele procura é fazer você rir ou se escandalizar enquanto coisas terríveis acontecem.

Vamos falar de alguns casos. O que o presidente argentino Javier Milei e sua motosserra representam?

Milei é um personagem extremamente grotesco, e é difícil falar dele com seriedade, mas suas decisões afetam a vida de milhões de pessoas. Durante a campanha presidencial na Argentina, um adversário disse que divulgar as coisas mais bizarras sobre Milei, como o fato de ele falar com um cachorro morto, o humanizava em vez de prejudicá-lo. O desafio para o jornalismo nesses casos é duplo: não se pode tomá-lo pelo que ele pretende ser, mas também não se pode subestimar o que ele significa e seu poder de atrair as partes mais frágeis de uma sociedade. O fato de Milei gritar “esquerdistas de merda” é, para muita gente, um ato de espontaneidade e não um sintoma de desequilíbrio. A partir desse ponto de dano, Milei estabelece uma conexão, e não apenas por causa do que diz, mas também pelo que simboliza. A mesma coisa pode ser observada nos casos de Trump e Musk: eles são personagens avariados, que transformam o mundo em um veículo para seu desejo de vingança e, a partir daí, se conectam com muita gente.

O que um jornalista pode fazer frente ao grotesco? Usar, evitar, ignorar?

Quando o grotesco se torna um símbolo, o jornalismo pode contestar seu significado. Às vezes, basta devolver aos símbolos sua história ou mostrar suas consequências. Outras vezes, basta se recusar a desviar a atenção. Lembro-me de que, após o envolvimento de Milei no golpe da criptomoeda $LIBRA, o governo parecia desesperado para mudar de assunto e, em um determinado momento, surgiu do nada um suposto decreto que dizia que as pessoas neurodivergentes voltariam a ser chamadas de “débeis mentais”. Nós, em nossa série de podcasts El hilo, contamos o golpe, mas não consideramos essa provocação digna de ser noticiada. É preciso decidir o que contar e se perguntar que efeitos tem fazê-lo. Ou não fazê-lo. Nesses casos, o equilíbrio entre o cômico e o trágico se rompe.

O que você diz de Nayib Bukele, presidente de El Salvador, e seus vídeos mostrando violações dos direitos humanos? Onde termina o grotesco e começa o ultrajante?

A abordagem de Bukele é diferente, mas pressupõe uma lógica semelhante. Há uma construção deliberada de sua imagem, onde o grotesco é precisamente a ideia que ele quer mostrar sobre si mesmo, como se fosse o herói vingador do povo. Bukele é publicitário, e sua equipe de comunicação, como nos disse uma pesquisadora, é uma grande criadora de conteúdo dramático. Pode parecer grotesco visto de fora, mas ele sabe o impacto que está buscando, inclusive além das fronteiras do país. Esses vídeos ultraproduzidos são sua tentativa de impor uma narrativa mítica que eclipsa a realidade, como por exemplo, dizer que ele é o homem durão que derrotou as quadrilhas, quando, na verdade, ele fez um pacto com seus líderes para desarticulá-las.

E o que acontece em Cuba, onde nem sequer parece haver intenção de construir uma nova narrativa?

É um pouco como na Venezuela, embora Maduro ainda se dê ao trabalho de inventar novos inimigos quando comete fraudes eleitorais. Em Cuba, o discurso oficial descreve diretamente uma realidade que não existe, e os líderes cubanos não parecem mais se importar se alguém acredita neles ou não. Quando não há sequer um esforço para construir uma narrativa verossímil, o discurso também se torna grotesco. Não porque seja escandaloso, mas pela total desconexão entre o que se diz e o que se vive, pela esquizofrenia.

Qual o papel desempenhado pelo grotesco na forma como a política latino-americana é percebida de fora?

Acho que isso moldou um estereótipo, mas, nesse olhar, há formas distintas de racismo: tomar os exemplos mais grotescos como uma representação total da política latino-americana é de uma ignorância assustadora. E isso não apenas quando se trata de escárnio: até mesmo a admiração por figuras como Bukele ou Milei é tingida de condescendência e desconhecimento. Se você ficar com a imagem grotesca, não verá o contexto ou os processos históricos por trás dela. E, assim, não verá mais nada.

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