Inspirada em “El Matadero”, conto escrito pelo argentino Esteban Echeverría por volta de 1838, que descreve um cenário de fome e violência extremas, a autora brasileira antecipa seu romance em construção “Guanxuma”: a escassez de comida, os tantos famintos entre kilumbus e mûntus e a certeza de que o pão de mandioca nunca está quente demais para aquele que padece de fome.
As juntas, os músculos das costas e as laterais do pescoço latejavam num ritmo compassado tum tum tum tum tum tum, fazendo-a chacoalhar pela senda. Sentia-se pedrinha jogada com raiva no fundo duma kacimba¹. Kiuá Nganga Pambu Njila! Kiuá Njila!² O canto esquerdo de sua boca, retorcido para o lado do nascente, olfateava menga³, pois as narinas já cansadas da pesada catinga. O terreno sob a qual assentava os pés descalçados lhe castigava o estômago com o tanto de polvadeira que oferecia. Arre! Pambu Njila não arrefece nunca! Quem for descrente, que cante!Aiuá⁴! Chegou ao destino que o caminho lhe ditava. O solo lodoso regado com menga pingada das artérias lhe calcinava a mirada. Nove ou dez kilumbus⁵ arrodeavam um morto como se o estivessem velando. Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, vem a nós... Alguns estavam a cavalo, outros montados em suas botas, outros descalços. Muntûs⁶ se posicionavam atrás deles, em silêncio e sem sapatos, respeitando as hierarquias da vida – não chegara, ainda, o tempo da virada.
Mas a bateção de boca, um verdadeiro gritedo. Por certo não se tratava de nenhum velório. Palavrões imundos e até pornográficos, apesar do dia santo, inundavam os ouvidos dela. O turbante colorado havia perdido a função de fronteira. Apossou-se dela uma ânsia incontrolável de bater, de leve, na mbunda⁷ dum porquinho para saber a quem pertencia, como diziam os mûntus palavreadores. Por isso se aproximou mais e mais da turba mugrenta. Que palavreação era aquela?
Hum-hum. Como não dispunham de títulos medalhas ou estâncias, também des-graçados apesar de vindos da Europa, tentavam resolver no grito o que a autoridade carniceira desresolvia. Esses kilumbus estavam fatigados pela pesada tarefa de tentar adivinhar o sexo do morto. Já iam abandonando o fardo quando um ruivo descamisado gritou:
Aqui estão as pelotas⁸!
Vestindo um avental branco, pelas canelas, todo manchado de menga, numa mimese gaucha da arte impressionista, aquele que parecia o chefe, com a carranca peculiar à voz de mando, abriu espaço no meio da turba. Com um facão muito bem amolado, num upa, retirou as pelotas da interioridade do morto, mostrando-as aos expectadores, como se fosse um campeão de carreira elevando aos céus o troféu.
Sim, são os testículos! Gritou alguém.
É um macho! Outro comentou.
Um macho-morto naquele lugar era algo terminantemente proibido. Deveria ser jogado aos cães, porque nem a barriga da terra o comeria. Mas havia tamanha escassez de comida naquele tempo e tantos famintos entre kilumbus e mûntus que o chefe resolveu fechar os olhos para as pelotas do morto. Porém, frustrados com a conclusão de que se tratava dum morto-macho, os kilumbus bateram em debandada, puteando. Acharam melhor encher o estômago com as razões que costumeiramente inventavam, afinal, estava proibida a começão de carne na sexta-feira santa. Muntûs se aprochegaram ao corpo do ex-vivente, também tinham razões para matar a fome, mas de outro jeito – sabiam que o pão de mandioca nunca estaria quente demais para aquele que padece de fome.
Quero apenas a pança e as tripas, senhor! Deixa o sebo pra mim!
Os rins e o coração pra mim!
Bolas de sangue caíam sobre as cabeças. Muntûs, donos de uma tasca antiga do povoado, arrastavam as entranhas do morto; outros se iam com os mondongos. Outras arrancavam um a um os sebos de gordura que o carniceiro-chefe havia deixado nas tripas. Outras enchiam de ar os pulmões do morto para neles depositar, depois de secos, as interioridades que iam recolhendo – fígado, coração, rins, mondongo, patas.
Achureee-ra! Achureee-ra!⁹
Com o turbante colorado que lhe tapava as orelhas, Inana passava uma vez por semana. Entre a sorte e o azar, ia e vinha, repartindo a viagem com latidos habitados por um tempo implacável que a impedia de qualquer retorno. Vinha puxando pelos ombros uma espécie de carroça de madeira, de duas rodas. Não se sabia se os cães a haviam adotado ou se ela adotara os cães.
*
Achureee-ra! Achureee-ra!A presença dela se antecipava pelo anúncio de sua voz. E ela ia desfilando pela vereda a marca das rodas na barriga terrena, e Lumingu ia abrindo a porta estreita de sua casa e Munga vestindo o saiote de rua e Eufrásia já atravessando o lodo encarnado para encontrá-la. Buenas! Inana sorriu, sem mostrar os dentes. Um vento lamentável soprou suavemente e tocou seus nervos.
Diante de Eufrásia, abriu o pacote feito de lona encerada. Uma nuvem de moscas se levantou. A kitandeira comprou fígado e uns três ou quatro pedaços de coração. Lumingu, que se aproximava da carroça, em sua beleza delgada, pediu uma porção pequena de rins. Munga comprou mondongo e patas.
Terminada a venda, Inana envolveu novamente o restante das achuras no pacote. Colocou a carroça nos ombros e partiu, deixando atrás de si parte da comida e do sustento de Eufrásia, Lumingu, Munga e um montão de bantu e kilumbus que dependiam do trabalho delas pra viver a vida.
Pobre do touro sacrificado naquela sexta-feira santa em que ela esteve no matadero, pobrezinho, nem sabia que o local era proibido para um corpo como o seu.
1. Sinônimo de poço de água, o K indica sua origem do quimbundo.
2. Canto tradicional de saudação à divindade bantu “Pambu Njila”, a dona dos caminhos.
3. “Sangue” em quicongo, uma das línguas bantu predominantes na formação do Brasil.
4. Expressão de alegria em quimbundo, uma das línguas bantu predominantes na formação do Brasil.
5. Inspirada em Changô, el gran putas, de Manuel Zapata Olivella, vindo a significar gente que tem mau cheiro.
6. Significa cada integrante de uma coletividade bantu.
7. Nádegas em quimbundo.
8. Testículos em castelhano e referência à cidade de Pelotas, no RS (Brasil), centro charqueador no século 19.
9. “Achurera” vem de “achura”, palavra quéchua que significa “comer sangue”. “Achureras” eram mulheres, geralmente negras, que vendiam os chamados miúdos dos bovinos e de outros animais (intestinos, pulmões, baço, coração...) para a população mais pobre na região sul do Brasil e Uruguai, especialmente no século 19.
2. Canto tradicional de saudação à divindade bantu “Pambu Njila”, a dona dos caminhos.
3. “Sangue” em quicongo, uma das línguas bantu predominantes na formação do Brasil.
4. Expressão de alegria em quimbundo, uma das línguas bantu predominantes na formação do Brasil.
5. Inspirada em Changô, el gran putas, de Manuel Zapata Olivella, vindo a significar gente que tem mau cheiro.
6. Significa cada integrante de uma coletividade bantu.
7. Nádegas em quimbundo.
8. Testículos em castelhano e referência à cidade de Pelotas, no RS (Brasil), centro charqueador no século 19.
9. “Achurera” vem de “achura”, palavra quéchua que significa “comer sangue”. “Achureras” eram mulheres, geralmente negras, que vendiam os chamados miúdos dos bovinos e de outros animais (intestinos, pulmões, baço, coração...) para a população mais pobre na região sul do Brasil e Uruguai, especialmente no século 19.