Notas sobre a “cultura do narcotráfico”  A sociedade do excesso

“Flor de Coroa de frade”, 2024. Tinta acrílica e marcador permanente sobre linho cru.
“Flor de Coroa de frade”, 2024. Tinta acrílica e marcador permanente sobre linho cru. © Aislan Pankararu. Foto: Ricardo Prado

Em vários países latino-americanos, uma estética marcada pela ostentação, o exagero e o grotesco vem ganhando espaço. Inspiradas nos códigos do narcotráfico, a “narcocultura” e a “narcoestética” nutrem a admiração por figuras como a do mafioso e assassino colombiano Pablo Escobar e se misturam cada vez mais à cultura popular.

As escadas rolantes ao ar livre da Comuna 13 – um bairro predominantemente pobre, antigamente conhecido como um dos lugares mais perigosos do mundo e hoje um dos mais turísticos de Medellín, na Colômbia – estão tomadas pela figura do maior chefe do narcotráfico, Pablo Escobar. Redes, camisetas, chaveiros, cartazes e pequenas esculturas com seu rosto, bolsas e até cópias de seu documento de identidade são vendidos nas esquinas e nos becos do bairro como o souvenir mais representativo da cidade.

Mesmo que o prefeito de Medellín, Federico Gutiérrez, tenha tentado dissuadir os comerciantes, a imagem do conhecido mafioso permanece intacta como se ele fosse o expoente máximo da cultura local. “Quem causou tanto dano à nossa cidade não pode ser uma referência nem um exemplo moral”, declarou Gutiérrez. “Quando vejo que estabelecimentos comerciais estão vendendo camisetas desse mafioso, digo-lhes para tirá-las dali ou interviremos como autoridade”, completa.

Seguindo essa mesma linha, vários políticos do México sugeriram a proibição nas festas populares dos corridos [estilo musical mexicano] que façam apologia à violência e ao consumo de drogas ou referência a personalidades ligadas a crimes: “Tomar as providências necessárias para evitar que o talento artístico utilize qualquer referência a personalidades ou atos ilícitos por meio de imagens, voz, áudios ou vídeos” – constava em um comunicado político do início deste ano.

A cultura produzida pelo narcotráfico, no entanto, está tão normalizada que qualquer tentativa por parte das autoridades de combatê-la parece produzir o efeito contrário. O fenômeno ligado ao narcotráfico na Colômbia – e, nas últimas décadas, no México e em outros países latino-americanos – é candidato a ser uma das representações culturais mais intensas e eficazes no sentido de conseguir chegar a diferentes camadas sociais.

Porsches, Ferraris e Lamborghinis fazem parte da paisagem

Embora Pablo Escobar, antigo líder do cartel de Medellín, tenha sido assassinado há mais de 30 anos, em 1993, a venda, a produção e o consumo de drogas ilegais continuam tão presentes como nas décadas de 1970 e 1980. Os traquetos (como são conhecidas as pessoas que trabalham no mundo do narcotráfico) acumularam riqueza, mas, acima de tudo, criaram novos comportamentos e códigos de valor (dinheiro fácil) que impactaram a vida econômica, política, social e cultural devários países.

Há 40 anos, a cultura do narcotráfico era um assunto de nicho. Hoje, o cinema, as redes sociais e a televisão a converteram em um fenômeno cotidiano. Séries de televisão como Sem tetas não há paraíso, escritas pelo atual candidato à presidência da Colômbia, Gustavo Bolívar, ou El cartel, escrita por um ex-traficante colombiano, alcançaram os maiores índices de audiência e um grande reconhecimento internacional, mas sua verdadeira proeza foi a popularização de uma estética bizarra ou chique, na qual o extravagante, o exagerado e o desproporcional prevalecem; tudo aquilo que confere status ou imita a figura do criminoso, do chefe e suas mulheres.

Um exemplo: é comum ver carros de luxo em caravanas pelas ruas do sul de Medellín ou em centros comerciais próximos ao aeroporto, apesar das ruas íngremes, estreitas e caóticas da cidade. Porsches de 100 mil, Ferraris de 200 mil e Lamborghinis de 500 mil dólares já viraram parte da paisagem.

Este ano, por exemplo, as redes sociais se encheram de imagens e vídeos de um Mercedes Benz AMG G63 avaliado em 1,4 bilhão de pesos colombianos com placas brancas de seis dígitos que diziam “Kuwait”. Símbolos de ostentação praticada hoje não apenas pelos traquetos, mas também por músicos de reggaeton, jogadores de futebol, influencers, negociantes de criptomoedas, cirurgiões plásticos e outras personalidades com dinheiro em busca de popularidade e esbanjamento.

A estética do narcotráfico como mainstream

Outra característica comum da cultura do narcotráfico está na arquitetura. Em cidades colombianas como Medellín, Cali ou Barranquilla, é comum encontrar fachadas com portões gregos revestidos de mármore e grades douradas, às vezes com esculturas em gesso de leões e pelicanos. Diferentemente do costume dos anos 1980, quando apenas os chefes da máfia podiam mostrar sua riqueza emergente e a acumulação de dinheiro, hoje tal ostentação pode estar camuflada em superfícies lisas e persianas de alumínio de qualquer bairro, copiando as casas “modernas” de empresários que, por sua vez, são cópias de residências de artistas e influencers da Europa ou dos Estados Unidos, cujas imagens circulam nas redes sociais.

“Eu me pergunto se esses códigos estéticos do narcotráfico são casos isolados de certos grupos da sociedade, ou se, em vez disso, já constituem parte da nossa identidade nacional e vão além do fato de os considerarmos de bom ou mau gosto”, diz David Cadavid, professor de Arquitetura de Medellín. A estética do narcotráfico em países como a Colômbia e o México já não pertence apenas aos traficantes, mas faz parte do gosto popular. Fenômenos como o reggaeton, cujas letras e videoclips são, em sua maioria, uma ode às práticas mafiosas, e as novelas e séries sobre criminosos garantem sua continuidade no tempo e nas cidades.

É como se hoje em dia a cultura do narcotráfico fosse sinônimo de cultura popular, na qual a ostentação e a aparência se transformam em sonho coletivo. Um modo de pensar e atuar que permeia toda a sociedade. “Tenho proibido meus estudantes de usar o telefone celular no colégio”, diz Margarita Escobar, professora de um colégio no centro de Medellín. Sua proibição, mais que um capricho autoritário, tem a ver com os vídeos de TikTok que circulam exibindo influencers com armas, atletas com dentes de ouro, mulheres com joias encrustadas de diamantes e vestidos de estilistas e homens ostentando carros de luxo e sua coleção da Nike: “Essas são as referências de identidade com as quais as novas gerações crescem. Meus estudantes adotam essas condutas consciente ou inconscientemente. Não precisam ser traficantes, mas podem se parecer com eles”, afirma.

No entanto, como acontece com as proibições por parte das autoridades políticas, qualquer esforço que vem do mundo acadêmico parece em vão. A cultura do narcotráfico chegou para ficar nas narrativas populares e reconfigurar não apenas o que aparece e é exibido no bairro, na escola e na família, mas também as formas de pensar. É uma visão de mundo, segundo a qual o excesso é a regra.

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