Os romances de José, de Thomas Mann, são mais do que apenas a reprodução da narrativa bíblica: eles são uma contraproposta literária ao nacional-socialismo – e um reflexo do exílio do autor.
O número de refugiados tem aumentado constantemente. A comunidade internacional deve se unir e negociar sobre formas de lidar com essa situação e de distribuir as pessoas da forma mais justa entre os países. A conferência, contudo, está ocorrendo de forma insatisfatória, com quase nenhum país se declarando disposto a receber mais gente. Os governantes desses países consideram-se demasiadamente sobrecarregados com problemas internos, acreditam que não podem se dar ao luxo de aumentar ainda mais o desemprego e não querem que os temores de suas respectivas populações em relação à suposta infiltração estrangeira e à imigração descontrolada sejam ainda mais intensificados.O que pode soar como uma descrição muito contida das condições atuais refere-se, na verdade, à Conferência de Evian de 1938. Como a crescente repressão dos nazistas obrigou cada vez mais judeus a emigrar, 32 Estados e 71 organizações de ajuda humanitária se reuniram por iniciativa de Franklin D. Roosevelt. No entanto, nem mesmo os EUA ampliaram, nesse contexto, a cota anual anterior de 27.370 imigrantes oriundos da Alemanha e da Áustria.
“Sentar ali, naquele salão maravilhoso, ouvir como os representantes de 32 países se levantavam um após o outro e explicavam como gostariam muito de acolher um número maior de refugiados, e como lamentavam terrivelmente o fato de que, infelizmente, não podiam fazê-lo, foi uma experiência devastadora. [...] Tive vontade de me levantar e gritar com todos eles: Vocês não sabem que esses malditos ‘números’ são seres humanos, pessoas que terão que passar o resto de suas vidas em campos de concentração ou fugindo pelo mundo, se vocês não os acolherem?”, escreveu em suas memórias Golda Meir, que mais tarde se tornaria primeira-ministra de Israel.
Escrever no exílio é um luxo
Thomas Mann teve a sorte de não ser diretamente afetado pelos resultados dessa Conferência. Depois da ascensão de Adolf Hitler ao poder, em 1933, o escritor e sua esposa Katia não retornaram de um período de férias na Suíça. O exílio de Mann nunca representou uma ameaça existencial para a família, que havia anteriormente conseguido transferir parte do patrimônio de Katia e o dinheiro do Prêmio Nobel recebido por ele para a Suíça. Mas, acima de tudo, Mann não precisou se esforçar muito para reconstruir sua vida, quando emigrou para os EUA em 1938.Naquele momento, ele já era conhecido e respeitado graças às traduções de seus livros para o inglês e também ao trabalho de divulgação de seu editor nos EUA, Alfred A. Knopf, bem como às turnês de palestras que havia realizado no país. O papel de representante de uma Alemanha do bem, que os nazistas estavam arruinando naquele momento, e de representante do espírito e da cultura, parecia ter sido criado sob medida para ele. E, na jornalista Agnes E. Mayer, Mann tinha uma admiradora e protetora imensamente influente e abastada. Com sua habilidade estratégica, ela contribuiu consideravelmente para manter o poder de influência e o aprazível estilo de vida do escritor.
Para Thomas Mann, o maior luxo era poder escrever durante o período da manhã. Não importava como o mundo estivesse tumultuado, não importava em que lugar do mundo ele se encontrasse. Quando não retornou à Alemanha em 1933, ele estava trabalhando em José no Egito, o terceiro volume de sua obra em quatro partes José e seus irmãos. Era um projeto que já vinha se arrastando há muito: em 1926, Mann havia começado a recontar uma lenda bíblica, e dois volumes já haviam sido publicados. O terceiro seria, na verdade, a conclusão, mas aconteceu o que era comum em muitos dos projetos do escritor: eles iam crescendo durante a escrita, proliferando de um projeto de romance para uma epopeia de vários volumes.
No caso dos romances de José, havia também o desejo dos editores de uma publicação rápida, de forma que, depois de José no Egito, que Thomas Mann concluiu enquanto ainda estava na Europa, deveria vir o próximo volume, encerrando finalmente o projeto. Mann demorou para fazer isso, inseriu Carlota em Weimar e As cabeças trocadas nesse ínterim, para só então, já estabelecido na Califórnia, se sentir pronto para a conclusão da tetralogia – que começa com um outro exílio para José. Um menos ruim do que o primeiro, quando seus irmãos ciumentos o vendem a comerciantes ambulantes, que o revendem como escravizado no Egito. Lá, ele faz uma carreira surpreendente na corte de Potipar, até ser punido por uma ofensa da qual não é culpado. Potipar sabe como transformar essa punição em recompensa e envia José para a prisão do Faraó, onde uma carreira ainda mais vertiginosa o aguarda neste volume final.
Uma contraproposta à ideologia dos nazistas
À primeira vista, os romances de José parecem estranhos. Enquanto Hitler arrastava a Europa para o abismo, Thomas Mann usava supostamente todo o tempo do mundo para pintar cenas e imagens dos tempos bíblicos em um estilo narrativo arrebatador. “Enciclopédia do filisteu educado” é como Bertolt Brecht os chamava com um cinismo atônito. Mas os romances de José não eram uma fuga para manhãs de escrita que ignoravam o presente. Pelo contrário, eles foram se tornando cada vez mais evidentes como contrapeso ao projeto nacional-socialista de estabelecer e assegurar um mito do povo alemão. Mann também criou um mito, mas um mito que pertence a toda a humanidade. E que entende o mítico não como algo irremediavelmente predestinado, mas como a incorporação do ser humano em contextos supraindividuais – contextos que o indivíduo pode também testar, questionar e modificar.Além disso, um programa pessoal de oposição aos nazistas incorpora-se como postura ao projeto José: a ira e a fúria são sentimentos que Mann não consegue tornar produtivos para sua prosa. Ele prescreve a alegria como estratégia de isolamento contra a loucura bárbara em sua terra de origem. E, assim, o tom narrativo da tetralogia torna-se uma obra-prima de conversa fiada abrangente que utiliza todas as facetas da malícia. A extensão da tetralogia deve-se também à inexorabilidade com a qual a instância narrativa quer se acomodar no amortecimento do humor.
Exílio, experiência, narrativa
Como em todas as suas obras, Thomas Mann baseia-se em seu tempo e entorno para escrever os romances de José. A maneira como José no final organiza a crise de fome e o armazenamento de cereais, como Ministro da Alimentação, remete claramente à política estatal de investimento do New Deal de Roosevelt. O personagem de Mai-Sachme, administrador da casa de José, é um retrato afetuoso de seu amigo Martin Gumpert, médico e escritor.E, como sempre, Mann precisa do atrito e da ignição da experiência individual. José é abençoado, tem uma beleza exuberante e sabe o quanto é peculiar. O fato de ter ido parar em uma cultura diferente é a melhor coisa que poderia ter acontecido a ele, que assim não fica mais totalmente exposto aos perigos da vaidade, podendo transformar sua singularidade em algo útil para a sociedade na qual se encontra. Ele torna-se um mediador, uma figura social, capaz de catalisar as mudanças necessárias na sociedade justamente por dispor da distância do estrangeiro.
Thomas Mann transforma de forma sedutora o tema do exílio em um Bildungsroman, um romance de formação, deleitando-se com uma versão maximamente positiva de seu próprio papel, que não é fácil, mas que ele assume com consciência do dever: o papel do artista que entende as exigências da época e coloca a beleza a serviço do bem. Ou, pelo menos, sacrifica partes significativas de seu tempo de escrita para redigir e gravar apelos aos alemães sob o regime nazista. E para fazer várias turnês extensas de palestras pelos EUA, nas quais adverte sobre o que a democracia precisa para se defender dos fascismos de seu tempo.
Junho de 2025