Mulheres no hip-hop  As penetras

Em seus estágios iniciais, o hip-hop era, ao menos na percepção do público, um território quase exclusivamente masculino. Mas, desde os anos 1980, nos primórdios do rap, artistas mulheres já contribuíam para o estilo – como musicistas, produtoras, ou trabalhando na indústria musical –, embora, por muito tempo, não tenham sido vistas em pé de igualdade. Elas simplesmente não faziam parte.

Instinct leads me to another flow (flow) Every time I hear a brother call a girl a bitch or a ho Trying to make a sister feel low You know all of that gots to go” (O instinto me leva a outro fluxo (fluxo) Toda vez que ouço um irmão chamar uma garota de vadia ou prostituta Tentando fazer uma irmã se sentir mal Você sabe que tudo isso tem que acabar)

Queen Latifah „U.N.I.T.Y.“ (1993)

O hip-hop era composto de poses masculinas, correntes no pescoço, cachorros, carros envenenados e mulheres seminuas, ou, muitas vezes, só os seus traseiros. A história do hip-hop é de expressão pessoal, rebelião e mudança social. Desde o início até hoje, o hip-hop sempre foi uma plataforma para a liberdade artística e o desenvolvimento da população negra dos EUA, para suas declarações políticas na luta contra o racismo.

O início: as mulheres à sombra dos homens
 

O motivo pelo qual justo as mulheres não foram levadas a sério no início desse importante movimento de alcance social é uma questão para quem estuda história. Certo, porém, é que vozes femininas já se colocaram em evidência muito cedo, com Sha-Rock, MC Lyte e Salt’n’Pepa . No início, tiveram muito menos visibilidade que seus colegas homens, mas, no final dos anos 1980, duas jovens chamadas Dana Elaine Owens e Melissa Elliott, conhecidas respectivamente como Queen Latifah e Missy Elliott, começaram a virar o jogo. Desde o começo de suas carreiras, ambas conseguiram – com o apoio de colegas homens como Timbaland e Fab 5 Freddie – alcançar um vasto público internacional, falando de temas como empoderamento e justiça social para as mulheres.
 

Mas, na busca por igualdade, o papel foi inicialmente invertido: as mulheres deram um caráter sexual a suas personalidades de rappers. Artistas como Lil Kim, Foxy Brown e Trina ficaram famosas por suas letras indecentes, que lhes renderam muita popularidade e uma grande parcela na venda de álbuns. Não se pode contestar que elas ocupam um lugar lendário no rap, mesmo que seja questionável se essa estratégia ajudou ou não a melhorar a imagem unidimensional da mulher como objeto sexual. No entanto, ao se observar artistas de hip-hop modernas como Nicky Minaj, fica claro que elas não usam sua sexualidade com o intuito de vender sexo, mas para questionar as estruturas patriarcais tanto do hip-hop quanto da sociedade em geral. Trata-se de mensagens sobre a força feminina, a resistência e a soberania em um mundo dominado por homens. As letras de caráter sexual são desvinculadas das fantasias masculinas tradicionais, por exemplo, na música Anaconda, na qual Minaj transmite uma mensagem de “body positivity”.

E na Alemanha?
 

A cena alemã passou por um desenvolvimento semelhante: nos primórdios do gênero, só poucas mulheres conseguiram ficar tão famosas quanto seus colegas masculinos. A primeira rapper alemã a se destacar foi Cora E. Ela já era ativa no final dos anos 1980, mas foi nos anos 1990 que a cena alemã começou a se agitar. O trio TicTacToe, do Vale do Ruhr, considerado o “Salt’n’Pepa” alemão, Sabrina, de Frankfurt, e Nina MC, de Hamburgo, não se destacaram apenas por ser mulheres, mas também por seus temas que extravasavam o contexto habitual do hip-hop. Também nesse contexto, o esforço inicial rendeu frutos: em 2024, não se pode imaginar os lançamentos de grandes nem pequenos selos sem a presença feminina. Depois que o duo SXTN, em 2015, apostou ainda mais do que antes na provocação através da utilização específica de clichês masculinos, em 2024 a indústria parece ter amadurecido. Uma ampla gama de artistas independentes (Hayiti, Ebow, Die P) e do mainstream (Badmómzjay, Shirin David, Juju) se vale tanto em termos de estilo quanto de conteúdo de todas as facetas imagináveis, e não tem medo de colaborar com colegas masculinos e de fazer experimentos que englobam mais de um estilo.

Uma lacuna
 

Ainda em 2022, apenas 13% de todas as faixas populares de hip-hop eram interpretadas por mulheres. Em comparação, no gênero pop, essa proporção costuma ser de um terço. Quando se trata de produção, ainda é pior: de acordo com uma pesquisa sobre representação e igualdade na indústria musical dos EUA, apenas 3,4% das pessoas que exerciam cargos de produção eram mulheres, enquanto aproximadamente 96,6% eram homens. Enquanto a proporção de produtoras musicais dobrou entre 2018 e 2019, em 2020 essa tendência inverteu, abrindo uma lacuna considerável em termos de representatividade.

Don’t get it twisted – none of this came easy (Não se engane – nada disso foi fácil)

Rapsody

Esses números são surpreendentes, pois a contribuição de rappers mulheres é hoje muito visível, tendo em vista a parada de sucessos ou playlists populares. A forma como as mulheres são vistas na cena também parece ter mudado. Já se foram os tempos nos quais as mulheres apareciam nos vídeos de rap basicamente mudas, seminuas e se espreguiçando em capôs de carros, em que eram ofendidas em textos sexistas. Os números não são tudo. A aceitação também é importante, especialmente dentro de gêneros que dependem de uma base de público, como o hip-hop. Na minissérie Primeiro as senhoras da Netflix (2023), a rapper Rapsody declara: apesar de todo o trabalho inicial das pioneiras dos anos 1980, o caminho para as luzes da ribalta é árduo. Os repetidos desafios resultantes de estereótipos sobre as mulheres são efeitos colaterais de suas carreiras Há muito a fazer, não apenas no hip-hop. As histórias pessoais das artistas, os pequenos passos e as pequenas conquistas de territórios previamente masculinos fazem parte de um movimento maior, cujo objetivo é alcançar igualdade, expandir fronteiras e difundir novas perspectivas, para finalmente chegar a um momento em que todas as pessoas possam realmente fazer parte.

Assista a “Primeiro as senhoras” internacionalmente na NETFLIX

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