Séries alemãs  O cafetão

 © Amazon Prime Video

Parcialmente baseada em fatos reais, a série “O cafetão”, da Prime Video, leva os espectadores à mal-afamada zona de prostituição de St. Pauli, em Hamburgo, no final da década de 1970 e nos anos 1980. Um período de apogeu obsceno, mas que talvez tenha sido o fundo do poço daquela área. O lugar concentrava prostituição, lojas pornôs, clubes de striptease e shows de sexo ao vivo.

Turistas, homens de negócios e, é claro, marinheiros com licença para desembarcar na cidade se amontoavam no Eros Center – um bordel de seis andares que concentrava a indústria local de trabalho sexual. Nosso ponto de entrada nesse mundo é o jovem Klaus Barkowsky (Aaron Hilmer), dono de bar que se torna cafetão e forma a “Gangue Nutella”, um grupo de cafetões novatos que enfrenta o cartel dominante de comerciantes de carne conhecido como GMBH. Nem é preciso dizer que ali começa uma guerra para definir território.

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Até os espectadores acostumados com séries oferecidas pela TV a cabo e por serviços de streaming – que adoram exibir as vidas selvagens e loucas das pessoas, em uma época na qual ninguém passava o tempo olhando para o próprio celular – podem ter dificuldades com O cafetão. O cenário, que ainda parecia colorido e peculiar na década de 1960, quando os Beatles fizeram seu aprendizado no Star Club, não ficou apenas mais duro duas décadas mais tarde, mas também carregado de drogas e dinheiro. É um mundo decaído, obsceno e bárbaro, mas nunca escabroso.

Ao longo de seis episódios, na virada da década de 1970 para os anos 1980, Klaus se torna uma figura atuante na Reeperbahn [famosa rua localizada no bairro de St. Pauli, centro da vida noturna associada à zona de prostituição de Hamburgo]. Seu principal inimigo e rival no ramo de cafetinagem é o escaldado 'Beatle' Vogler (Karsten Mielke), que não é nenhum Super Fly. Klaus, por outro lado, entra em cena com a aura da discoteca e a atitude de um excêntrico, o que, a princípio, faz com que todos riam dele. Mas o escárnio é apenas combustível para o ego de um disruptor nato, e Klaus tem visão, por mais absurdo que isso possa parecer nesse meio.

Klaus vive falando sobre como quer trazer um clima de Studio 54 para seu andar no Eros Center. Portanto, talvez não seja surpreendente que as prostitutas escolham trabalhar para ele e não para os brutamontes que se embebedam de cerveja e as espancam há muito tempo. E a ascensão de Klaus é auxiliada pelo amor e pelos conselhos de Jutta (Jeanette Hain), uma profissional do sexo mais velha e que, por acaso, já foi amante de Vogler, o que dá uma carga quase edipiana à usurpação de Klaus.

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O cafetão manda bem quando se trata de evocar a sujeira de uma zona de prostituição dos velhos tempos. Klaus e seus companheiros – aspirantes a traficantes – andam por uma área, onde a luz do dia ou qualquer outro sinal do mundo exterior não parece chegar. Suas desventuras iluminadas por neon acontecem em um punhado de bares e clubes sujos, com tetos envoltos em fumaça de cigarro e todas as superfícies cobertas por uma camada de sujeira. Não é difícil imaginar o cheiro de cerveja e vômito, ou coisa pior, que deve impregnar o ar. E todos os locais são decorados no estilo horroroso da década de 1970. Além de uma tomada do porto, que Klaus ignora enquanto circula com seu Lamborghini, a série quase não exibe imagens de Hamburgo – o que parece ser menos sinal de um orçamento apertado do que o reconhecimento de como o ambiente do personagem é suficiente para o próprio. A Reeperbahn é seu reino, e o cafetão não tem interesse em um mundo exterior que não o bajule ou não se submeta a ele.

Os maus bons velhos tempos

O cafetão apresenta seu cenário sórdido com surpreendente pouca preocupação com as sensibilidades dos dias atuais. Embora as personagens femininas tenham um certo grau de liberdade de ação, a exploração sexual, base da economia da zona de prostituição, é retratada como um mero fato em suas vidas. (O episódio de abertura é, de longe, o mais infame – o que pode ser a forma encontrada pelos produtores para informar o público sobre o que virá por aí. Ou talvez seja apenas um chamariz). Os diálogos não têm o tom dos roteiristas do século 21 preocupados com o politicamente correto.

Notamos que o jovem Klaus é um pouco menos antiquado em sua política sexual do que os cafetões veteranos com costeletas que ele está tentando desbancar. Como protagonista, contudo, ele dificilmente seria considerado polido para os padrões atuais. Quando o vemos ordenar que uma infeliz namorada se prostitua de forma grotesca em uma plataforma de petróleo, onde será uma espécie de cordeiro sacrificado, não podemos ignorar o quanto o personagem está se iludindo com a fantasia de proporcionar bons momentos a todos. (É questionável se a própria série lida suficientemente com os aspectos execráveis de seu caráter).

O roteiro acaba mencionando abusos sexuais passados que ajudaram a levar pelo menos algumas das garotas à prostituição, e um flashback elíptico indica que até mesmo o próprio Klaus sofreu abuso de um tutor quando era adolescente. Mas, ao contrário de muitas narrativas ficcionais atuais, a série não se prende a traumas passados. O ambiente hostil não permite isso, e os personagens não permitem que o trauma os defina. Todos aqui que passam dos 20 e poucos anos são sobreviventes obstinados.

Mais provocativa é a ideia de que algumas das garotas que passam a trabalhar para Klaus estão fugindo de suas cidades de origem, lugares permeados pelo tédio e por um conformismo sufocante, e que a vida em St. Pauli é uma forma de serem más, ou pelo menos dizerem a si mesmas que estão se rebelando. Mas a chegada da Aids em meados dos anos 1980 faz com que a fantasia de sexo, drogas e rock n' roll seja interrompida para todos. Quando os negócios em seu bordel se esgotam, Klaus volta-se para o tráfico de cocaína, momento em que a história de O cafetão se torna muito mais familiar.
 
Vale a pena ver a série, mas continuamos sem saber ao certo se os roteiristas encontraram mesmo algum motivo convincente para contar essa história em pleno ano de 2023. Chafurdar longamente em todo tipo de perversão, drogas e trilhas sonoras excêntricas pode nos fazer pensar, depois do sucesso de Christiane F., drogada e prostituída, também disponível por streaming pelo Amazon Prime, que algum executivo pegou o telefone e disse: “Tragam mais histórias sujas dessa época, agora!”. Dá até para imaginar uma compilação das trilhas sonoras de ambas as séries, que se chamaria Alemanha Ocidental: os anos sujos e decadentes.

Assista a "O cafetão" Streaming em todo o mundo pela Amazon Prime Video

O cafetão

Seis episódios de aprox. 50 min. cada
Elenco: Aaron Hilmer, Jeanette Hain, Henning Flüsloh, Lena Urzendowsky, Noah Tinwa, Karsten Mielke, Lara Feith
Roteiro: Niklas Hoffmann, Peter Kocyla, Rafael Parente
Direção: Laura Lackmann, Stefan A. Lukacs
Produção: Neuesuper
Alertas sobre o conteúdo: nudez, violência, uso de substâncias ilícitas, uso de álcool, cigarro, linguagem chula, conteúdo sexual

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