Em uma época marcada pelo ressurgimento do nacionalismo branco, a obra de Hannah Arendt sobre o totalitarismo é frequentemente invocada como um guia para nossas crises sociopolíticas. A partir das perspectiva sul-africana, a leitura de sua obra revela, contudo, um paradoxo profundo.
Durante o resto da semana, a mídia internacional refletiu sobre o significado desse encontro. As checagens de fatos foram abundantes: não há genocídio branco, declararam, apenas desigualdade e criminalidade desenfreadas.
Neste ponto, a África do Sul não é um Estado-nação soberano negociando questões de ordem comercial ou diplomática. Em vez disso, o país é encenado como uma parábola do apocalipse racial. As manchetes não documentam a África do Sul, mas evocam uma fantasia de vitimização dos brancos – uma inversão, na qual os beneficiários da expropriação histórica imaginam a si próprios como seus alvos.
Uma estranha interdependência entre opostos
Desde que os primeiros navios da Companhia Holandesa das Índias Orientais tentaram contornar e, posteriormente, ocupar o Cabo, em meados do século 17, o território agora conhecido como África do Sul tem ocupado um lugar desproporcional e duradouro no imaginário racial global.O país serviu, em vários momentos históricos, tanto como um local paradigmático de conquista imperial e dominação racial quanto como um caldeirão simbólico de sonhos e solidariedades libertárias. Seus contornos, formados tanto pelas cartografias coloniais europeias quanto pelas produções intelectuais, culturais e políticas africanas, se estendem para muito além de suas fronteiras físicas, atingindo os terrenos especulativos daqueles que imaginam, contestam e reconfiguram a ordem racial.
Durante décadas, aqueles que se sentiam preocupados com a perspectiva ou a realidade do domínio da maioria negra mobilizaram a imagem do campo de extermínio como um recurso retórico, reenquadrando as mudanças na propriedade da terra ou na política estatal como ameaças existenciais à sobrevivência branca. Essa transposição metafórica da memória das atrocidades europeias para o contexto sul-africano, transformando o Estado pós-Apartheid em um perpetrador espectral, constitui o que Achille Mbembe poderia chamar de inversão colonial: uma reversão, na qual os beneficiários da dominação racial histórica se reimaginam como suas vítimas.
No cerne sombrio dessa operação retórica reside um absurdo profundo, que remete às reflexões de Hannah Arendt sobre o totalitarismo e a “estranha interdependência entre opostos” que ele gera. Aqui, o absurdo emerge na justaposição de realidades mutuamente incompatíveis: o mito da vitimização dos brancos ao lado do domínio estrutural contínuo do capital branco; a invocação do sofrimento humanitário por aqueles que, em muitos casos, chefiam as referidas condições de exploração; o apelo à simpatia global por aqueles cujos privilégios foram historicamente assegurados através da violência sistêmica. São essas tensões, onde fato e fabricação, queixa e dominação, atrocidade e impunidade circulam juntos, que marcam o clima político atual.
A reprodução do imaginário colonial por Arendt
Em As origens do totalitarianismo, Arendt faz duras críticas aos “fanáticos raciais da África do Sul”, considerando sua obsessão com a ordem racial como sintomática de uma degeneração ideológica da política em dominação brutal. A autora identifica os paralelos entre o Apartheid sul-africano e a lógica exterminadora do nazismo, mas, embora se posicione criticamente contra o autoritarismo racial rude do Apartheid, Arendt também reproduz, com pouca distância crítica, as mesmas hierarquias civilizacionais que o corroboravam.Como por exemplo na seguinte afirmação: “A raça é a tentativa emergencial de explicar a existência de seres humanos que ficavam à margem da compreensão dos europeus, e cujas formas e feições de tal forma assustavam e humilhavam os homens brancos, imigrantes ou conquistadores, que eles não desejavam mais pertencer à mesma comum espécie humana. Na ideia da raça encontrou-se a resposta dos bôeres à monstruosidade esmagadora descoberta na Africa — todo um continente povoado e abarrotado de selvagens — e a justificação da loucura que os iluminou como ‘o clarão de um relâmpago num céu sereno‘ no brado: ‘Exterminemos todos esses brutos!’.”
Aqui, a estrutura conceitual da crítica de Arendt baseia-se na reanimação de tropos coloniais. Os africanos negros são retratados como “selvagens”, sua presença reduzida à “monstruosidade da África”, sua humanidade visível apenas como um problema para os europeus. A raça é apresentada como uma espécie de medida ideológica de emergência, mas os próprios termos através dos quais Arendt traduz esta “emergência” estão saturados de fantasias coloniais brancas.
Em outro momento, ela elabora: “Os bôeres foram o primeiro grupo europeu a se alienar completamente do orgulho que o homem ocidental sentia por viver em um mundo criado e fabricado por ele mesmo... Preguiçosos e improdutivos, eles concordaram em vegetar essencialmente no mesmo nível em que as tribos negras vegetavam há milhares de anos... O grande horror... foi estimulado precisamente por esse toque de desumanidade entre seres humanos que aparentemente faziam parte da natureza tanto quanto os animais selvagens... Quando os bôeres... decidiram usar esses selvagens como se fossem apenas outra forma de vida animal... eles embarcaram em um processo que só poderia terminar com sua própria degeneração... dos quais, no final, eles difeririam apenas na cor da pele”.
A autora afirma que os africanos negros “vegetam” em um tempo estático e pré-histórico. Segundo ela, sua relação com a terra é reduzida à expressão “animais selvagens”; e o horror supremo é narrado não como a violência da dominação colonial, mas como a perspectiva da degeneração branca. A “degeneração” que Arendt teme não é o colapso de uma ordem racial injusta, mas a dissolução da própria distinção racial, enquadrada como um declínio civilizacional.
O que surge, então, é um paradoxo. Arendt denuncia o racismo segregacionista como “fanatismo”, enquanto, ao mesmo tempo, reproduz o imaginário colonial, em que a existência negra é descrita como estagnação, opacidade e natureza. Seu horror não é pela desumanização dos colonizados, mas pela possibilidade de que os brancos possam cair na mesma categoria de animalidade.
Arendt e Mandela
Esse paradoxo ganha corpo em um drama menor e mais íntimo: o episódio Balzan. Como David D. Kim relata em seu ensaio de três partes intitulado Por que Hannah Arendt não indicou Nelson Mandela para o Prêmio Balzan?, a história começa em 1963, um ano turbulento para Arendt. Ela acabava de retornar de uma breve estadia na Europa quando se deparou com uma tempestade em torno de Eichmann em Jerusalém. Do outro lado do Atlântico, Medgar Evers havia sido assassinado no Mississippi; na África do Sul, o Estado do Apartheid respondia a Sharpeville com novas leis repressivas e prisões em massa.Paralelamente, seu antigo professor Karl Jaspers, membro do júri do Prêmio Balzan para a Humanidade, Paz e Fraternidade entre os Povos, pediu a ela recomendações. O prêmio, recém-criado e de escopo ambicioso, buscava recompensar “esforços em prol da paz entre as raças”.
Arendt levou o pedido a sério. Ela organizou uma reunião confidencial em Paris com o escritor sul-africano Dan Jacobson, que lhe forneceu dossiês sobre possíveis candidatos. Três nomes vieram à tona: Alan Paton, o autor liberal de Chora, terra bem amada; Trevor Huddleston, o bispo anglicano inglês que havia apoiado os residentes negros de Sophiatown contra remoções forçadas; e Nelson Mandela, então na prisão. Jacobson enviou a Arendt os discursos de Mandela no Julgamento por traição, completos com correções manuscritas, juntamente com notas biográficas sobre seu trabalho jurídico com Oliver Tambo e sua liderança na Liga Juvenil do Congresso Nacional Africano.
Seria plausível imaginar que Arendt, após ter diagnosticado a África do Sul como uma “sociedade racial” em As origens do totalitarismo, aproveitaria a oportunidade para recomendar Mandela, a personalidade que mais visivelmente encarnava a resistência a esse sistema e que estava pagando por isso com sua liberdade. Mas ela não fez isso. No dia 9 de agosto de 1963, Arendt encaminhou o material de Jacobson a Jaspers com seus próprios resumos biográficos. Ela listou “TREVOR HUDDLESTON” em primeiro lugar, elogiando seu testemunho cristão, seu compromisso com a não violência e sua popularidade entre os sul-africanos negros. Mandela, observou brevemente, era advogado, um “negro”, descendente de “chefes tribais”. Ele havia organizado greves, vivido na clandestinidade, sido traído por um informante e feito “um discurso muito notável” em seu julgamento. Mas Arendt o relegou ao segundo lugar.
Kim mostra como essa recusa é reveladora. Arendt não havia lido os discursos de Mandela cautelosamente, nem incluiu a biografia mais completa de Jacobson ao repassar os materiais. Ela enfatizou o carisma de Huddleston, sua clareza moral e seu potencial de ser reconhecido pela Europa, enquanto reduziu Mandela a algumas apressadas linhas, ofuscadas por referências ao “terror”. Para um prêmio destinado a reconhecer a “paz entre as raças”, Arendt não podia, ou não queria, ver um revolucionário negro, que havia se voltado para a luta armada como uma figura de paz. Sua imaginação política exigia uma testemunha moral que se enquadrasse na civilização; Huddleston podia incorporar esse papel, Mandela não podia.
O paradoxo arendtiano
O paradoxo ressurge: Arendt poderia ter citado a raça como o fanatismo ideológico dos bôeres, mas, em seus julgamentos, reproduziu a hierarquia que pretendia criticar. Ela poderia ter apoiado a luta contra o Apartheid, mas apenas quando esta era mediada por uma personalidade branca, cuja autoridade era legível para a Europa. Ela pode ter reconhecido o sofrimento de Mandela, mas não sua política. O que a aterrorizava não era a longa perpetuação da dominação racial, mas o espectro da violência revolucionária, o próprio colapso das fronteiras entre política e guerra que ela via como a ruína da própria civilização.No episódio Balzan, a hierarquia civilizacional de seus escritos é, portanto, discretamente reproduzida. A resistência negra é colocada como excessiva, “fanática” e manchada pela violência; a solidariedade branca é elevada como a autêntica portadora dos valores humanos universais. Se, como argumenta Kim, a decisão de Arendt permaneceu ignorada por estar fora de sua obra publicada, esta decisão cristaliza, porém, a estrutura de seu pensamento: uma crítica ao racismo que se detém no limiar da ação da política negra; uma denúncia do “fanatismo” que não consegue se desvencilhar do imaginário colonial.
Outubro de 2025