Tempos bizarros  ​​“Precisamos rever nossas metáforas”

“Cura pela água salgada”, 2024. Tinta acrílica e marcador permanente sobre linho cru.
“Cura pela água salgada”, 2024. Tinta acrílica e marcador permanente sobre linho cru. © Aislan Pankararu. Foto: Ricardo Prado

O filósofo brasileiro Charles Feitosa acredita que o termo “bizarro” é ideal para descrever as três primeiras décadas do século 21. Para ele, o que há de bizarro na nossa época talvez seja a maior quantidade de determinadas “estranhezas”, mas, principalmente, a maior velocidade com que elas aparecem – causando grandes comoções, que são rapidamente esquecidas e substituídas por novos escândalos.

Em 2017, o professor e pesquisador Charles Feitosa se debruçava sobre a ideia de que o Brasil (e o mundo) passavam por “tempos bizarros”. Na época, diz ele hoje, “a gente não podia imaginar o que ainda estava por vir no país: a eleição de Jair Bolsonaro, a pandemia, o negacionismo científico, a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023”. No entanto, segundo Feitosa, “já havia sinais de uma crise, ou seja, de ataques político-midiático-jurídico-econômicos à democracia”. Apesar de, especificamente no Brasil, haver uma atual trégua em contraposição àquele período, é preciso “continuar resistindo à ascensão da ultradireita no país e no mundo”, diz o filósofo que mantém um olhar atento a nossa era permeada por “incertezas radicais”.

No lugar de “tempos sombrios”, expressão eternizada por Hannah Arendt para se referir à primeira metade do século 20, marcada por regimes totalitários, você propôs o termo “tempos bizarros”. Como você define esses tempos?

A expressão “tempos sombrios” passou a me incomodar a partir de 2017, porque se tornou uma imagem-clichê. Isso sempre acontece quando usamos repetidamente a mesma metáfora para descrever situações de anormalidade. Acredito que o termo “sombrio” reproduz um antigo preconceito metafísico que opõe luz (a verdade, o bem, o belo) às trevas (a mentira, o mal, a feiura). Penso que esse maniqueísmo simplista não dá conta do período complexo em que vivemos. São tempos em que precisamos rever não apenas nossos conceitos, mas também nossas metáforas. Não basta apenas lutar contra o totalitarismo, mas também questionar as soluções igualmente totalitárias que rapidamente se apresentam.

Assim, contra as perigosas fake news surgem as agências de checagem de fatos, mas quem é que checa essas agências? Contra o pernicioso negacionismo científico, logo aparece um cientificismo arrogante, capaz de desqualificar como “bobagem” tudo que não estiver sob a égide da racionalidade técnica. Contra o preocupante excesso de tempo de telas que aflige todas as faixas etárias, aparece uma lei de proibição de celulares nas escolas, como se essa medida restritiva simplista fosse capaz de dar conta da multiplicidade de causas que envolvem nossa dificuldade de prestar atenção em alguma coisa no mundo contemporâneo. Vivemos tempos em que tanto os problemas como as respostas precisam ser colocadas sob avaliação, sempre em nome de uma pluralidade mais abrangente de perspectivas.

Você descreveu o momento de exceção que o Brasil atravessava em 2017 como “tempos bizarros”. Ainda faz sentido usar esse conceito hoje?

Acho que o termo “bizarro” é ideal para descrever não apenas os dias de hoje, mas as três primeiras décadas do século 21. Ele deve ser usado não apenas no sentido usual de “estranho” ou de “anormal”, mas também nos seus sentidos agregados de “ousado”, “admirável” ou até mesmo “criativo”. Dizer que vivemos em “tempos bizarros” exige não apenas se revoltar com qualquer tipo de iniciativa fundamentalista na vida política ou cotidiana, mas também reconhecer e apoiar as inúmeras ações corajosas, individuais ou coletivas de defesa da existência de quem quer que pense ou viva diferente do modelo branco-ocidental-hetero-cristão-tecnicista, que arroga a pretensão de definir de forma hegemônica a essência da humanidade.

Hoje, fenômenos inusitados se tornam febre nas redes sociais, como os “bebês reborn”, bonecas hiper-realistas que são tratadas como humanos de verdade. Esse seria um sintoma de tempos bizarros?

Seja como itens de coleção, seja como dispositivos terapêuticos, as bonecas hiper-realistas não são uma grande novidade e podem ser importantes aliadas em tempos de ansiedade e de isolamento. O que preocupa são as muitas notícias alarmistas que circulam por aí sobre supostas situações em que ocorreria uma crise no discernimento entre os bebês reais e os artificiais. Essas notícias ganharam ares de importância com a contribuição tanto da mídia, como das mentes mais contaminadas por um certo tom apocalíptico, quer dizer, na constante busca de sinais de deterioração moral e social. O que há de bizarro na nossa época talvez seja a maior quantidade e, principalmente, a maior velocidade com que essas “estranhezas” aparecem, causando grandes comoções e sendo muito rapidamente esquecidas, assim que são substituídas por novos escândalos.

Tudo se passa como se essas “bizarrices” comprovassem a certeza de que o apocalipse é iminente. E essa certeza parece funcionar para muita gente como a única verdade permanente em tempos de incertezas radicais. Há um desejo de fim de mundo por toda a parte. Existe até mesmo uma corrente reacionária de pensamento político, autodenominada de Dark Enlightenment (Iluminismo Sombrio), que busca acelerar o colapso da sociedade como a conhecemos, para instaurar um novo regime autoritário, baseado em hierarquias raciais. Repetindo: as soluções que inventamos para nossos problemas podem ser tão ou mais perigosas que eles próprios.

Outro fenômeno “bizarro” da vida contemporânea, cada vez mais reduzida a telas, são os relacionamentos afetivos entre humanos e parceiros criados por inteligência artificial. O bizarro é o “novo normal”?

Não considero toda novidade tecnológica como prenúncio da extinção da humanidade, mas também não celebro acriticamente as novas tecnologias e os comportamentos daí decorrentes como se fossem inofensivos, ou pior, meros aprimoramentos facilitadores das relações humanas. A redução da vida contemporânea às telas é de fato importante, mas tenho a impressão de que a maioria dos debates em torno desse tema se desenrola de modo reducionista, como se a única culpa do empobrecimento das relações afetivas ou das crescentes dificuldades de aprendizagem por parte das crianças em idade escolar fosse a onipresença dos celulares. Sem querer menosprezar a gravidade da situação atual, vale perguntar: Será que os seres humanos não têm desde os primórdios da civilização uma enorme dificuldade em manter o foco?

Pesquisas recentes indicam que mesmo os monges da Idade Média enfrentavam batalhas diárias pela concentração enquanto viviam enclausurados. Como não havia nenhuma tela à vista, a culpa das distrações era recorrentemente atribuída a tentações demoníacas. Hoje o mal está de novo colocado apenas fora de nós, nos algoritmos das redes sociais. Mas talvez haja algo de estrutural no nosso modo de ser humano que torna impossível atingirmos a atenção plena, ao contrário do que prometem os gurus de autoajuda. Pensar sob esse viés nos obriga a buscar soluções mais complexas em vez de nos contentarmos apenas com restrições e proibições.

No mesmo contexto vale também perguntar: Será que não sofremos todos, há muito tempo, de um desejo totalizante de relação com o outro, ou seja, de estar com o “diferente”, mas com a condição que ele sempre se comporte como “igual”? Talvez os parceiros criados por IA sejam apenas uma nova versão de algo muito mais antigo: a nossa dificuldade de suportar os outros enquanto outros, nossa incapacidade de suportar a instabilidade e a imprevisibilidade das relações amorosas. Regulamentar o uso da IA com certeza ajuda, mas não enfrenta o problema em toda sua amplitude.

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