Surrealismo  A arte como ferramenta antifascista?

“Voltei Nordeste, meu amor”. Tinta acrílica e marcador permanente sobre linho cru, 2024.
“Voltei Nordeste, meu amor”. Tinta acrílica e marcador permanente sobre linho cru, 2024. © Aislan Pankararu. Foto: Ricardo Prado

O Surrealismo foi uma reação ao fascismo ou até mesmo seu oposto radical? Como a arte reage hoje a tendências políticas bizarras? Uma conversa com Adrian Djukić, responsável, ao lado de Stephanie Weber e Karin Althaus, pela curadoria da mostra “Mas viver aqui? Não, obrigado(a)” na Galeria Lenbachhaus.

O Surrealismo é tido como um dos movimentos artísticos mais radicais do século 20. Qual a razão disso?

Isso se deve principalmente à época de seu surgimento entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Alguns membros fundadores já haviam lutado na Primeira Guerra e sentiam repulsa pela ideia de representar um país. Os surrealistas sabiam que a sociedade inteira precisaria mudar para que o mundo não fosse parar novamente em um estado de guerra. Eles tinham informação sobre as atualidades políticas da época, mas eram também muito bem instruídos em filosofia e partiam do pressuposto de que uma revolução maior seria necessária para resolver os problemas que já começavam a aparecer de forma massiva.

Outra prova de sua radicalidade era a tentativa de mudar a arte, que, a seus olhos, tinha fracassado. Ao mesmo tempo, posicionavam-se quanto a questões políticas: anticolonialismo, anticapitalismo e internacionalismo já eram posições formuladas explicitamente nos anos 1920. Isto é, verdadeiras exigências máximas.

A arte surrealista enfatiza o bizaro, o onírico e o inconsciente. Como isso se manifestava exatamente?

O Iluminismo era considerado um fracasso, pois, em nome do que se chamava de bom senso, crimes continuavam a ser cometidos, países subjugados, guerras travadas. Ou seja, rejeitavam categoricamente a realidade. Através do sonho e do inconsciente ou grotesco, entravam em jogo categorias que possibilitavam uma visão ampliada da realidade. O sonho e a prática artística deveriam influenciar a realidade, a fim de tornar possíveis mundos imaginários melhores e mais interessantes.

Concretamente, isso se manifestava de diversas formas: artistas surrealistas arquivavam seus sonhos, que compartilhavam, por exemplo, em revistas. Trabalhavam com técnicas que lhes roubavam parcialmente o controle sobre as imagens, utilizando fogo sobre negativos, dupla exposição ou cola em placas fotográficas. Sua arte era muitas vezes experimental, e eles recorriam ao princípio da colagem para conseguir estabelecer as conexões mais surpreendentes. O sonho era, portanto, menos uma fuga do que um meio de exercer pressão contra um mundo dominado por metas e exploração.
 

Desde o Renascimento, o conceito “bizarro” descreve fenômenos que questionam a ordem do mundo – sejam estados psíquicos excepcionais e sonhos ou ideias ousadas e criações geniais. Que papel o bizarro exerceu no contexto do Surrealismo?

Foi algo muito importante. O Surrealismo começou como um movimento literário e logo se tornou presente em todas as áreas das artes visuais. Como representação de um mundo de alguma forma alienado ou como recurso estético, para questionar a ordem da realidade por meio de novas combinações do que já existia. A realidade foi, portanto, cruzada com o inesperado, o que se pode observar muito bem na fotografia surrealista.

Efeitos bizarros ou grotescos, que os surrealistas mais apreciavam, criavam paradoxos e ambivalências. A arte não é boa ou má, mas tem sua própria qualidade – isso também era entendido por vários deles como ferramenta antifascista contra um mundo demasiadamente restrito.
 

Existiram artistas que fizeram do bizarro o principal núcleo de seus trabalhos?

É difícil destacar nomes individualmente. Um exemplo é o pintor cubano Wifredo Lam, que lutou contra o fascismo de Franco na Guerra Civil Espanhola. Em 1941, quando ele fugiu da Europa a bordo de um navio, desenhou seres que não eram pessoas nem bichos nem plantas, mas tudo isso ao mesmo tempo. Outro exemplo é a redação da revista Tropiques, na Martinica, onde Suzanne Césaire e René Ménil trabalhavam com cruzamentos temáticos. Eles não tinham interesse em uma pureza cultural, mas em uma conexão vanguardista de diferentes correntes de pensamento e estéticas. Em seus escritos, Aimé Césaire talvez tenha levado o bizarro ao ápice. Precursor da Black Liberation, ele foi cofundador da revista e também tinha afinidade com o Surrealismo. Ele inverteu tudo: o bizarro é o próprio mundo, não alguma arte estranha. Isso fica particularmente claro no colonialismo, uma barbárie que, em primeiro lugar, extirpa a civilidade do colonizador, tornando-o rude e degradado.
 

Surrealistas como André Breton ou Max Ernst entendiam sua arte não apenas como experimento, mas também como resistência contra a racionalidade e os sistemas autoritários. Regimes fascistas apostavam, por sua vez, em ordem, clareza e disciplina. O Surrealismo era a antítese do fascismo?

Desde o início, o Surrealismo foi definitivamente antifascista em suas ideias básicas. Apesar disso, houve também surrealistas que flertaram com o fascismo – infelizmente, o irracional pode também se harmonizar muito bem com o fascismo. Contudo, os inúmeros artigos, panfletos, revistas e biografias, que relatam sobre artistas que se escondiam da Gestapo em apartamentos uns dos outros, falsificando passaportes, lutando na resistência e construindo redes internacionais de solidariedade, deixam claro quais eram as convicções fundamentais do movimento.

Muita energia foi também investida na análise do fascismo, a fim de poder combatê-lo melhor. E, além da resistência, foi-se também desenvolvendo um humor antiautoritário, que ainda faz parecerem ridículas as tentativas impotentes da direita atual de desenvolver algo como humor e descontração.
 

Podemos falar do Surrealismo como um movimento artístico antifascista, porque ele implode o normal e o convencional? Concretamente: onde o fascismo quer impor a uniformização, o Surrealismo festeja o divergente, o inconsciente, o “selvagem”?

Certamente isso foi verdade por muito tempo, e o Surrealismo teve muito sucesso em reconhecer o que era normal e convencional e, portanto, deveria ser combatido. Esse inconformismo foi cultivado com muita atenção em intensos debates internos. Resumindo: surrealistas queriam materializar um individualismo divergente, que envolvesse mais coletividade ao mesmo tempo.

Entretanto, já nos anos 1960, ficou claro que apenas essas divergências não seriam mais suficientes, pois elas próprias já haviam se tornado parcialmente sistêmicas. Ainda hoje a direita opera naturalmente com o “selvagem” – embora sob signos autoritários. Nesse aspecto, o Surrealismo foi superado em muitos aspectos pelas pessoas erradas.
 

Como a arte reage hoje a novos autoritarismos ou tendências políticas “bizarras”?

Gostaria de inverter a questão e abordá-la de forma positiva a partir da arte surrealista. No Surrealismo, a arte não devia tratar apenas de acontecimentos atuais. Não se escrevia sobre uma imagem: “Sou contra a guerra”. Algo assim era visto como uma restrição das possibilidades da arte. Esta produzia algo único, talvez perturbador, de qualquer maneira intenso. Contudo, isso não impedia artistas de participar ativamente da vida política. Hoje observo que a arte muitas vezes só reage aos acontecimentos atuais e então formula declarações políticas em forma de obras.
 

O que podemos aprender com a história antifascista do Surrealismo para os dias de hoje?

A filósofa Elisabeth Lenk descreveu assim: ao combinarem a teoria crítica e a prática do Surrealismo, artistas do movimento conseguiram adicionar uma nova dimensão ao político. Mesmo nas situações mais adversas, mantiveram-se acima delas, produziram arte em campos de detenção e promoveram exposições em copas de árvores, enquanto aguardavam autorizações para sair do país. Vemos Claude Cahun após uma sentença de morte, felizmente impedida pelo fim da guerra, em um retrato fotográfico mordendo com confiança uma pequena águia do Reich. A superioridade de artistas do Surrealismo não dependia da benevolência dos autoritários. Essa diversidade de camadas às vezes falta hoje em dia. Podemos certamente aprender com essa mistura de alto nível, espírito combativo e humor.

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