Mundo policêntrico  Quem vai ocupar o centro geopolítico de poder?

Quem vai ocupar o centro geopolítico de poder? © Wilson Borja

Em meio a tensões geopolíticas, China e Estados Unidos vêm travando uma acirrada disputa pelo centro de poder global. Especialistas apontam que um mundo dividido em dois blocos antagônicos é o oposto daquilo que países do Sul Global, como o Brasil, desejam.

Em artigo recente na revista Foreign Affairs, o atual chanceler federal alemão Olaf Scholz definiu o cenário geopolítico mundial em 2022 com a palavra Zeitenwende, ou seja, “guinada histórica”. De acordo com o premiê, a fase “extraordinária” da globalização, durante a qual a América do Norte e a Europa tiveram crescimento estável, altas taxas de emprego e inflação baixa, após a derrocada do bloco soviético, chegou ao fim. Diante da ascensão da China como importante player global atual, Scholz enfatiza a importância da construção de um mundo multipolar, com vários centros de poder, a fim de evitar uma nova Guerra Fria – desta vez entre Washington e Pequim.

De fato, parece ser consenso entre analistas internacionais que os Estados Unidos não estão mais sozinhos no centro da geopolítica. A hegemonia econômica, militar e política estadunidense é cada vez mais ameaçada pela China, que, aliada à Rússia, vem criando uma contraforça em relação ao Ocidente. De acordo com a projeção mais recente do grupo financeiro Goldman Sachs, embora a economia chinesa tenha desacelerado nos últimos anos e a população esteja em queda, o PIB do país pode superar o dos Estados Unidos por volta de 2035.

Distribuição mais igualitária de poder

Um mundo dividido em dois blocos antagônicos, porém, serve menos aos interesses de países emergentes do chamado Sul Global, como o Brasil. Na última cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), realizada em janeiro último, em Buenos Aires, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se comprometeu a reforçar o multilateralismo e a “construção coletiva da multipolaridade”.  

“Essa multipolaridade remete a uma concepção de distribuição de poder igual e o papel do Brasil é lutar por ela a partir da sua política externa”, afirma Karine de Souza Silva, professora de Relações Internacionais e Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. “Em termos militares e econômicos, ainda existe uma bipolaridade clara entre os Estados Unidos e a China. Um mundo policêntrico ou multipolar é uma vontade intelectual e diplomática, mas, enquanto existirem trocas desiguais, ele não pode se consolidar”, completa Silva.

Ponte entre Norte e Sul Global

Luciana Ballestrin, cientista política da Universidade Federal de Pelotas, acredita que, com a crescente polarização de forças na geopolítica, o Brasil não deverá tomar partido de nenhum dos dois rivais, mas fazer uma diplomacia pragmática e estratégica, mantendo a equidistância. E se China e Estados Unidos são hoje os dois grandes centros do poder, ambos dependem, porém, de outros “centros” de influência para exercer sua liderança, como ressalta a economista Karin Costa Vazquez, pesquisadora da Universidade Fudan, em Xangai.

“A Índia é uma economia que vem crescendo muito rápido e exercendo um papel estratégico na geopolítica mundial como um pivô no Indo-Pacífico muito importante. Temos a Asean no Sudeste Ásiatico e, na África, os países em torno da União Africana. A América Latina é outro polo que, apesar da instabilidade política, exerce papel importante no tabuleiro, tanto para os Estados Unidos quanto para a China”, analisa Vazquez. Para a economista, o Brasil deve não apenas manter a neutralidade em relação aos dois centros antagônicos, mas criar pontes entre os países emergentes do Sul Global e os desenvolvidos do Norte Global, projetando seu soft power no plano internacional. Para isso, é necessário, em primeiro lugar, retomar a posição do país na América Latina.

Retorno ao palco geopolítico

A volta do Brasil à Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), à União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e à Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) são os primeiros passos nessa direção. Segundo Vazquez, o país tem condições materiais concretas para exercer essa liderança: “Com o Brasil sediando os Brics e possivelmente a COP-30 em 2025, estaremos presidindo plataformas importantes de coordenação político-econômica, e a proposição brasileira, com uma agenda construtiva nesse momento tão delicado, pode fazer grande diferença”.

Para Silva, no entanto, reconstruir pontes entre os países centrais e periféricos em um cenário adverso – marcado por uma crise de governança global, pela guerra na Europa e pela instabilidade econômica agravada pela pandemia – é um desafio. “Os últimos quatro anos foram muito ruins para a política externa, porque o Brasil estava em uma situação de insularidade. Agora o país vai voltar a dialogar com as potências e com as nações com as quais tinha bloqueado os canais de interlocução, se utilizando de uma estratégia multilateral e de diversificação de parceiros, como os Estados Unidos, a Europa, a China, os países periféricos”, afirma Silva. “O Brasil tem condições de opinar como protagonista sobre temas internacionais que são desafios comuns, como paz, segurança, mudanças climáticas, comércio, intercâmbio de tecnologias”, completa.

Construção retórica

Na batalha de poder que se configura entre os diversos centros, Vazquez enxerga “a dualidade entre autocracia e democracia” como uma construção retórica. “A disputa entre os Estados Unidos e a China é por alta tecnologia, inteligência artificial, biomedicina, aviação, robótica, semicondutores. É isso que está em jogo”, afirma. “Entre as democracias no Ocidente, de um lado, e a China e a Rússia, de outro, existem muitas nuances. A própria Índia, que é um aliado pivô dos Estados Unidos no tabuleiro internacional, vem tendo sua democracia muito questionada sob o atual governo do primeiro-ministro Narendra Modi”, pontua.

Neste contexto, a ascensão, no interior dos países ocidentais, de grupos antidemocráticos, é também uma preocupação internacional. “Dentro das próprias democracias existem grupos autoritários de extrema direita, que é supremacista branca. São movimentos anti-imigração, racistas, classistas, homofóbicos e heteropatriarcais. O Brasil, durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (2018-2022), utilizou a política externa para se alinhar a grupos ultraconservadores internacionais. A gente não vai conseguir resolver os grandes problemas se não tocar nessa ferida do supremacismo branco”, afirma Silva.

Em cenário geopolítico de tal forma conturbado e multicêntrico, a figura do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva pode ajudar a desarticular tensões e fazer mediações a nível global, acredita Ballestrin. “Neste momento de crise democrática, precisamos de lideranças comprometidas com uma noção de democracia que seja mais crítica à globalização neoliberal predatória. Existe a preocupação com as desigualdades econômicas, com compensações e reparações. É algo muito importante quando não há mais projetos políticos alternativos estruturais ao capitalismo neoliberal globalizado”, resume a cientista política.

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