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O início da cultura pop
Kafka e o cinema

O antigo cinema Ponrepo, Rua Karlova 20
O antigo cinema Ponrepo, Rua Karlova 20 | Foto: Petr Machan; © Goethe-Institut Chéquia

Nos primórdios do cinema, quando tudo era novo e sensacional, Franz Kafka estava fascinado por este novo meio de comunicação. Nos seus escritos, há inúmeras referências ao que Kafka viu no cinema.

De Alice Aronová

Nascido em Praga, o escritor Franz Kafka (1883-1924) viveu os primórdios do cinema e o seu fascínio pelos primeiros filmes foi enorme. Olhando retrospetivamente, estávamos perante a chamada cinematografia primitiva, porquanto os filmes eram caracterizados, regra geral, pelo seu carácter boulevard. Fosse como fosse, Kafka deixou-se cativar por esses filmes, tal como podemos ler nos seus diários e nas cartas dirigidas à noiva, Felizia Bauer. Os comentários que tece a estes filmes estão envoltos num tom «exaltado e apaixonado», por vezes «melancólico» também.

O cinema como distração e atração

Kafka começou a frequentar regularmente o cinema na primeira década do século passado. O género cinematográfico estava ainda a dar os seus primeiros passos, não era considerado uma forma de arte, e muitos escritores recusavam-se a trabalhar com realizadores cinematográficos na adaptação das suas obras para o cinema. Não acreditavam na qualidade dos argumentos e não apoiavam o cinema. Para eles, o cinema era, em oposição ao teatro, uma «atração de feira». A situação só se transformaria nos anos vinte, quando as longas-metragens começaram a ser consideradas, gradual mas resolutamente, como uma forma de arte e não apenas um entretenimento ligeiro. 

A primeira sala de cinema a surgir em Praga foi a Biograf U modré pike, na rua Karlova. A partir de 1907, o cinema começou a ser dirigido pelo ilusionista Viktor Ponrego, que complementava as suas peças de teatro com sessões de cinema e que comentava os filmes mudos de modo extraordinário. Nos prospetos publicitários que distribuía, prometia ao público «cenas da vida e do mundo dos sonhos que responderão a todo e qualquer desejo». Kafka frequentava regularmente este cinema, bem como o Cinema Oriente, fundado em 1908 na rua Hybernská, em Praga. Só um ano depois seria fundado um outro cinema em Praga, o elegante Cinema Lucerna, com café e cabaré. Este cinema mantém as portas abertas até ao dia de hoje e é palco regular, por exemplo, do festival cinematográfico de expressão alemã – o chamado Das Filmfest (Festival do Cinema). Kafka ia muitas vezes sozinho ao cinema, outras vezes com a família ou amigos. Entre os seus amigos mais íntimos encontrava-se o escritor Max Brod, que se recordava frequentemente das suas idas ao cinema com Kafka, não só em Praga, como também durante as suas viagens pela Itália, França e Alemanha
 

"A Escrava Branca" e outros êxitos

Em comparação com as primeiras curtas-metragens, o filme dinamarquês A Escrava Branca (Den hvide slavehandel I, 1911), do realizador August Blom, era relativamente extenso: com uma duração, surpreendente para a época, de 55 minutos, tornou-se a primeira longa-metragem, de duração média, da história do cinema. O filme conheceu um verdadeiro êxito junto do público. Contudo, não seria aclamado por todos – a história de amor com um bordel em pano de fundo desencadeou verdadeiros debates: estaríamos perante um filme de mau gosto e de má qualidade que merecia até ser proibido devido à sexualidade explícita ou antes perante uma amostra audaz da arte cinematográfica? Vejamos a recensão que o escritor checo Jiří Mahen publicou sobre o filme em 1911, no jornal Lidové noviny: «Quem tiver alguns escrúpulos no coração e juízo na cabeça, só poderá sentir nojo por este filme. Estamos perante um extraordinário disparate cinematográfico e uma fraude do nosso sentir social. E nada mais.» Apesar de tudo, Kafka ficou fascinado com esta história desprovida de enredo, mas, em todo o caso, emocionante e algo exótica, com um final repleto de ação, de perseguições e disparos de balas em cima de telhados. O escritor deixou-se cativar pela descrição do destino da bela Edith, que decide ir a Londres visitar uma pessoa da família. Durante a viagem de barco, Edith cai nas mãos de bandidos e acaba num bordel, onde dois homens se apaixonam por ela. Contudo, com a ajuda da polícia, é salva por um engenheiro de barcos a vapor, o homem da sua vida. Kafka foi acometido por sonhos horríveis e apaixonados, com a bela e inocente Edith e com a mulher sadista que a explorava, uma traficante de escravas.

Kafka apreciava também outros filmes mudos desta mesma época. Tratava-se, acima de tudo, dos primeiros documentários que se realizavam sobre a capital checa, a metrópole das cem torres. Digno de referência é o belo documentário de dois minutos apenas, intitulado Viagem de elétrico por Praga, realizado em 1908 por Jan Kříženecký, operador de câmara, fotógrafo e pioneiro do cinema checo. A câmara foi originalmente colocada na parte da frente do elétrico das linhas 3 e 7 e captou imagens que refletem a atmosfera de uma Praga que já não existe nos dias de hoje (o cais, as pontes, Letná, a vista sobre o castelo de Praga e a cidade judaica, na sua fase de remodelação, a zona em que Kafka residia).

Kafka deixou-se também cativar pelo documentário italiano intitulado Primeiro Concurso Internacional de Aeronáutica (Primo Circuito Aereo Internazionale Di Aeroplane In Brescia, 1909, realizado por Adolfo Croce), uma curiosidade técnica que pretendia captar a prestigiada efeméride do Grande Prémio da Aeronáutica. O filme mostra a preparação dos aviões para a partida e a sua subsequente descolagem. Podemos ver o trabalho de equipa dos mecânicos, sentir o entusiasmo dos cinquenta mil espectadores ali presentes e a paixão genuína dos construtores aeronáuticos e dos realizadores cinematográficos pelas aeronaves. Para além de tudo o mais, celebrava-se a vitória de Glenn Curtiss na Corrida Aérea Internacional de 9 de setembro de 1909. Kafka encontrava-se na altura de férias no nordeste de Itália, com o seu amigo Max Brod, e teve a sorte de assistir ao evento, tendo depois redigido um relato sobre esta sua experiência emocionante. Os Aeroplanos de Brescia, assim se chamava o artigo, foi publicado no diário Bohemia, de Praga: «É-nos anunciado que Curtiss disputa o Grande Prémio de Brescia… ainda mal nos déramos conta do anúncio e já o motor do avião de Curtiss ressoava nos ares. Ainda mal nos déramos conta do avião e já ele se afastava de nós, sobrevoando a planície que se agigantava a seus pés, até às florestas distantes que só agora pareciam elevar-se no horizonte.»

As viagens de Kafka não foram apenas reais, mas também proporcionadas pelo mundo cinematográfico. Neste âmbito, não podemos deixar de referir os filmes italianos Peschiera, Lago Maggiore, Liguria, Il corse de Mirafiori (1907-1913, realização coletiva), que foram também exibidos em Praga com coloração das imagens (ou seja, as imagens eram pintadas em tons de verde, azul, amarelo, sépia, castanho, etc.). O estilo contemplativo dos documentários italianos criava nos espectadores a sensação de se encontrarem de férias e o público, Kafka incluído, deixava-se transportar prazenteiramente pelas ondas do mar, pela beleza dos lagos, das grutas e dos monumentos da Antiguidade. Os documentários encerravam com um resumo das célebres corridas de cavalos, com desfile da elite da altura e apresentação da moda em vigor (os elegantes chapéus das damas).

Um quadro desaparecido e em busca da terra natal

E quanto a comédias? Neste ponto, não podemos deixar de assinalar a produção francesa Nick Winter e o Roubo de Mona Lisa (Nick Winter et le vol de la Joconde, 1911, realização de Paul Garbagni e Gérard Bourgeois). Trata-se de uma comédia de dez minutos rodada pelo primeiro produtor cinematográfico do mundo, Charles Pathé. A história baseia-se num acontecimento verídico passado no Museu do Louvre: em 21 de agosto de 1911, o quadro da Mona Lisa foi roubado e começaram as averiguações policiais, que, contudo, nunca deram frutos. O quadro seria encontrado, mais ou menos por acaso, dois anos mais tarde, em Itália.

Curiosamente, o roubo de quadro valioso não conduziu a um decréscimo no número de visitantes do Louvre. Bem pelo contrário: milhares de pessoas acorriam à galeria para verem o lugar vazio deixado na parede – entre esses milhares, o próprio Franz Kafka e Max Brod.

Durante algum tempo, Kafka declarou-se um sionista convicto. Durante essa fase, escreveu para o jornal sionista Selbstwehr [Autodefesa] e aprendeu hebraico, se bem que os seus conhecimentos nesta língua nunca ultrapassassem o nível básico. A língua de Kafka era claramente a alemã, se bem que também falasse fluentemente checo e francês. Lendo os diários de Kafka, podemos concluir que o escritor equacionava a possibilidade de emigrar para a Palestina, não só devido ao seu grave estado de saúde (o clima da Palestina poderia mitigar a sua tuberculose), mas também pensando nos amigos que o ajudariam financeiramente. E que tem tudo isto a ver com o cinema? Em 1921, encontramos a seguinte entrada nos diários de Kafka: «À tarde, filme sobre a Palestina». Sabemos tratar-se do filme Regresso a Sião (Shivat Zion, 1921), que Kafka viu no cinema Bio Lido, na rua Havilíčkova. O filme retratava a nova vida na Palestina e a reconstrução económica do país, bem como o cadinho de povos e culturas e a necessária conciliação de políticas. O filme foi patrocinado por Jerusalém e pretendia mostrar a realidade da Palestina aos judeus de todo o mundo. Nunca saberemos em que medida Kafka ponderava seriamente a possibilidade de abandonar a Europa e até que ponto este filme, em particular, o influenciou ou não. Para o escritor, a Palestina permanecia uma paisagem inalcançável, inacessível, um lugar próximo e distante – um espaço imaginário, um filme, se quisermos.

Que significado tinha, afinal, o cinema na vida de Kafka? Não temos respostas concretas para esta pergunta, mas tão-só suposições. Uma coisa é, porém, bem evidente: o escritor estava fascinado pelo cinema e conhecia de cor o programa semanal dos filmes em exibição. Para ele, o cinema significava beleza e felicidade, mas também sofrimento. É bem possível que, para Kafka, os filmes tenham funcionado como um escape à sua solidão, à sua própria vida aparentemente mais monótona do que emocionante. Kafka, jurista diplomado, trabalhava desde 1908 numa firma de seguros de acidentes em Praga (a escassos passos do cinema Lucerna) e, como sabemos, o seu trabalho não o realizava verdadeiramente: «Trabalha com zelo e diligência, mas aborrece-se terrivelmente. O tempo livre reparte-o entre certos deveres na loja do pai austero, algumas escapadelas com o crescente círculo de amigos – café, cinema, cabaré, bordel – e as experiências literárias que lhe são cada vez mais importantes.» Como observou, de forma incisiva, o escritor e ator alemão Hanns Zischler: «Kafka refugia-se várias vezes por ano no cinema, em busca de algo que o inebriasse. Vai ao cinema para esquecer. Não há melhor lugar no mundo onde o possamos fazer com prazer.»