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Entrevista a Diogo Silva
“Se não encararmos a crise climática numa perspetiva interseccional, vai ser impossível que as coisas mudem”

Diogo Silva no jardim do Goethe-Institut
Foto: Teresa Althen © Goethe-Institut Portugal

Diogo Silva é ativista climático e um dos nomes do projeto “Blog, Engage, Act”, dinamizado pelo Goethe-Institut em 2021. A sua preocupação com o futuro e o presente do planeta não é de agora, mas está cada vez mais forte. Quer que este seja um assunto de todos, sem exceção.

De Carolina Franco

Juntou-se a Matilde Alvim para pensar os desafios do presente com as ameaças da crise climática. Matilde escrevia, Diogo geria as redes sociais. O projeto que os unia chamava-se “Blog, Engage, Act”. Além de Matilde e Diogo, mais seis bloggers e ativistas da Bélgica, Alemanha, França, Itália e Espanha juntaram-se ao Goethe-Institut dos seus países para comunicar sobre o que mais os inquietava na crise climática. O objetivo primordial era conseguir chamar a atenção de mais e mais jovens.

Diogo Silva não era um novato no assunto. Depois de ler “This Changes Everything”, livro da escritora e ativista canadiana Naomi Klein, encontrou na luta pela justiça climática o seu lugar. Percebeu que todas as injustiças que o inquietavam se relacionavam com esta, e que era nesta área que queria começar a investir o seu tempo enquanto ativista. Juntou-se ao Climáximo, coletivo baseado em Lisboa pela justiça climática, em 2017 e desde então nunca mais se afastou. Foi um dos responsáveis pela mobilização de jovens para a primeira Greve Climática Estudantil e continua a ver nos jovens (mas não só) a esperança para que o caos climático não chegue. Acredita que ainda estamos a tempo, mas que não podemos demorar-nos. A mudança tem de acontecer já.

Numa pausa para férias em Lisboa, agora que vive em Berlim, passou pelo jardim do Goethe-Institut para conversar sobre o futuro. Garante-nos que não há nada que se possa fazer ou pensar amanhã que não precise de ser já pensado hoje.

Quando é que despertaste para uma ideia de justiça climática? Houve algum momento que tenha sido um gatilho para começares a pensar nisso mais a sério?

Acho que há uma primeira fase de saber que a crise climática existia, antes do 9.º ano. Lembro-me de falarmos da destruição da camada do ozono, que já era uma questão a nível ambiental com um grau de abstração enorme em comparação com outras coisas mais concretas de que falávamos no dia-a-dia. Penso que foi aí a primeira vez que comecei a perceber os impactos macro, mas nunca conectei muito porque apesar de eu ter alguma ligação à natureza, não era o suficiente para me mover. Quando eu pensava em fazer voluntariado, era mais na direção dos problemas sociais. Estudei economia, quis trabalhar na área da economia social e houve um momento-gatilho que foi quando li o livro “This Changes Everything” da Naomi Klein. Percebi a ligação entre a sociedade e o clima, e foi a primeira vez em que esta noção de ação e justiça climática mexeu realmente comigo. Eu achava que era mais importante pensar nos problemas de habitação e racismo em Lisboa e que a crise climática era um problema dos ursos polares e do degelo no Ártico, mas aí percebi que estava tudo ligado.
Logo a seguir, comecei a ir a protestos e quem organizava esses protestos era o Climáximo. Lembro-me de ir à primeira manifestação que foi contra os furos do Algarve, em 2017, e pensar que éramos muito poucos. Na altura, questionávamos como é que aquilo poderia mexer com o país inteiro, era preciso muito mais gente.

A tomada de posição de Greta Thunberg, ativista sueca, acabou por ter um impacto nessa dinamização um pouco por toda a Europa. Achas que faz sentido dizer que esta é uma luta de uma geração?

Acho que é sempre perigosa a generalização porque parece que se circunscreve a luta a uma percentagem de pessoas a nível global. Uma das primeiras coisas que fiz quando desisti de trabalhar em economia para me dedicar ao ativismo no Climáximo foi ir a escolas para tentar motivar as pessoas a juntarem-se à primeira Greve Climática Estudantil. Costumava dizer para quem achasse que estava a ser afetado pela crise climática levantar o braço, e havia meia dúzia de pessoas que levantava. A conclusão da nossa conversa era: se tu estás vivo, estás a ser afetado pela crise climática, quer saibas ou não. Nós vivemos numa era em que já existe crise climática e a dúvida é se vamos avançar para o caos climático. As condições-base de suporte à vida na Terra estão profundamente alteradas em relação ao que existia há 200 anos atrás, e do ponto de vista geológico é preocupante. Esta ideia de que é uma luta de meia dúzia de pessoas que vivem agora é uma ideia muito redutora. É verdade que os mais jovens, que previsivelmente são os que vão viver mais em comparação com as pessoas mais velhas, são os que vão sofrer mais com isto e é normal que se mobilizem. Mas não acho que seja uma luta circunscrita a esse grupo.

Mas como é que achas que é ser jovem hoje, tendo em conta os desafios que o planeta enfrenta? Fala-se muito em eco-ansiedade e há até jovens que dizem que o medo do caos climático altera planos para o futuro como terem filhos, por exemplo. Pode comprometer uma ideia de futuro?

Eu acho que já compromete uma ideia de presente, e já comprometeu no passado porque já vivemos a crise climática há muito tempo — comunidades indígenas dizem-nos que isto começa com o colonialismo. Quando há pessoas a morrer por causa da crise climática, vemos que não é uma questão de futuro para elas; o futuro dessas pessoas acabou hoje ou acabou ontem, e já era uma questão do passado. Acho que é considerada uma questão e cada vez mais as pessoas jovens sentem o seu futuro comprometido. E não só jovens, tem muito que ver com as zonas globais mais afetadas pela crise climática — e sem dúvida isso é transversal a jovens e não jovens. A eco-ansiedade surge com esta noção de impotência, e eu acho que isso vem muito da narrativa que se passa sobre o que é que podes fazer em relação a qualquer crise estrutural: remete-nos para a mudança individual, em vez de nos pôr a passar enquanto sociedade e coletivo. As mudanças estruturais da humanidade sempre aconteceram através de coletivos; de indivíduos que se mobilizaram com uma perspetiva coletiva.

Nos últimos tempos, há um discurso cada vez mais individual e de cultura do indivíduo. Como é que se pode pensar no papel de cada pessoa criando estruturas que abracem o coletivo?

Eu dei o exemplo das comunidades indígenas para falar de colonialismo e de imperialismo, mas nós vemos isto em Portugal. Há 30 anos todos os condomínios eram uma associação, hoje em dia são geridos por empresas. Perde-se o trabalho em conjunto para arranjar soluções para um bem comum. Acho que não é preciso irmos assim tão longe, continua a haver exemplos desses em Portugal, ainda existem relações de vizinhança ou proximidade em escolas, por exemplo. Eu acho é que temos de perceber que não resolvemos problemas estruturais sem nos responsabilizarmos, e quando olhamos para tudo como uma questão de eficiência económica estamos a achar que é a eficiência do mercado que vai resolver os problemas. Eu estudei economia e das poucas coisas que consegui aprender foi que eficiência de mercado não é sinónimo de equidade, só vamos ter equidade se regularmos o mercado e tivermos não sei quantas outras coisas que permitam que o mercado funcione para as pessoas. A tendência atual é para que tudo seja uma questão económica.

Quais são as ações macro e micro que precisamos de fazer já para garantir o amanhã?

Do ponto de vista da crise climática, sabemos que 70% das emissões globais vêm da produção de combustíveis fósseis. Não precisamos de mais tecnologia, já temos a tecnologia necessária para mudarmos para 100% renovável e o mesmo acontece com outras áreas como a mobilidade ou a agricultura. Se fizéssemos uma mudança nestas áreas, conseguíamos diminuir o nível das emissões para nos conseguirmos manter num limite planetário de bom suporte à vida. Há valores que são propostos hoje que existiam na década de 80, por isso quando se diz que propomos voltar a valores que existiam na idade da pedra, não é verdade. Estamos a propor valores possíveis. Para nós voltarmos a isso, o que temos de garantir é que aquilo que está a emitir emissões deixe de ser uma fonte de emissões e possamos avançar para outras alternativas. Isso implica uma mudança estrutural. O que tem de acontecer é uma transição para 100% renováveis. Para isso é preciso uma mobilização que seja contra-poder e é preciso tirar as estruturas do poder que permitem que esta lógica se mantenha hoje em dia. Agora há uma invasão da Rússia à Ucrânia e é preciso sair dos combustíveis fósseis russos, mas vamos para regimes como o Qatar fazer novos acordos e investir na expansão do gás, como está a acontecer na Alemanha; vamos fazer mais acordos com os Estados Unidos, que estão a expropriar pessoas indígenas. Tudo isto à custa de estarmos a tentar resolver a guerra na Ucrânia.  O que poderia ser um momento para um grande avanço nas renováveis, continua a ser a expansão do mesmo sistema.

A questão da mobilidade, de que já falaste, tem sido muito debatida em Lisboa. O que é que achas que seria importante ser feito, neste campo?

Uma parte do caminho tem sido feita, mas parece que agora em Lisboa se está a tentar reverter. Voltando à questão base, se 70% das emissões base vêm dos combustíveis fósseis, na mobilidade acontece o mesmo. Antes de mais temos de pensar na eletrificação de todos os meios de transporte. Do ponto de vista de outras barreiras planetárias que não são só renováveis, não existe lítio suficiente a nível global para manter o mesmo número de carros, ou até expandir o número de carros global, mas serem todos elétricos. Não só temos de fazer uma transição para o renovável como temos de fazer uma coletivização do transporte, e temos de avançar para transportes que são muito menos poluentes per capita. O ranking per capita do que é o transporte mais poluente de todos diz-nos que o primeiro é o avião, que também é o transporte mais desigual — só 20% da população mundial é que alguma vez pôs os pés num avião —, e o segundo são os carros individuais. Todas as experiências comprovam que a única forma de conseguir essa transição é tirar espaço aos carros individuais e aos aviões particulares. Em Lisboa, só 30% das pessoas que lá vivem é que têm carro. Quando há esta ideia de que tirar espaço aos carros é um atentado à liberdade individual, é preciso pensar que é de uma minoria de pessoas privilegiadas. Porque 70% das pessoas que têm de se deslocar todos os dias para Lisboa para trabalhar, que provavelmente ainda vivem na periferia porque os preços de habitação são terríveis, precisam de uma boa rede de transportes públicos. Para isso não é preciso só mais ciclovias, é preciso electrificar os transportes públicos, ter mais transportes, e é preciso que sejam acessíveis. Um bom exemplo, ironicamente, está a ser a Alemanha, porque criaram um passe para três meses que são 9€ por mês. Perceberam que os preços dos combustíveis fósseis iam subir tanto que não era possível as pessoas conseguirem deslocarem-se sequer para o trabalho, e fizeram uma coisa incrível: em toda a Alemanha, durante três meses, todos os transportes públicos, menos os Alta Velocidade, estão integrados nesse passe de 9€. O que acontece é que pessoas que nunca tiveram acesso sequer a ir para outras zonas do país, já têm este acesso. Mas o que aconteceu também foi que não havia capacidade para toda a gente nos comboios que existiam, o que mostra que é preciso criar estas soluções com um pensamento estrutural.

Olhas para a luta climática como a luta mais interseccional?

Acho que um erro enorme dos ambientalistas foi olharem para o problema da crise climática como um assunto que não é interseccional. A ideia inicial foi: “isto é uma questão de conservação, há certos grupos de animais que estão a sofrer com a crise climática e portanto temos que travá-la por causa de um pequeno número de animais a nível global”. Quando, na verdade, já na altura em que se dizia que havia o urso polar que estava a sofrer no Pólo Norte, havia pessoas a morrerem por razões diretamente ligadas à crise climática: o aumento dos períodos de seca, o aumento de alturas em que tens muito calor e depois podes ter muito frio ou grandes tempestades de neve, que já matavam pessoas há 20 anos, e que estão a agravar-se agora. Podemos chegar a pontos de não retorno, mesmo que parássemos todas as emissões a nível global. E precisamos de encarar isto como uma mudança humana, porque as pessoas mais responsáveis pela crise climática são as que são mais ricas e têm mais poder, e as pessoas mais afetadas pela crise climática são as pessoas mais pobres que, por sua vez, têm menos responsabilidade no estado nas coisas. Por isso, se não encararmos a crise climática numa perspetiva interseccional, vai ser impossível que as coisas mudem.

Há pouco disseste que és ativista a full-time e sei que te mudaste recentemente para Berlim. Porquê Berlim? Como é que fizeste a tua transição, estás em algum movimento ativista por lá?

Tive o privilégio de conseguir ter poupanças para, no momento em que decido fazer ativismo, conseguir estar um ano e meio a trabalhar em regime de voluntariado. Depois comecei a fazer freelance outra vez porque precisava de ganhar dinheiro, mas cá em Portugal é muito complicado estar a trabalhar em projetos relacionados com o clima com uma preocupação tão estrutural como a que eu tinha no Climáximo. O que fazia era trabalhar para coisas que não estavam relacionadas com isto e sentia-me duas pessoas diferentes. A ideia de ir para a Alemanha foi motivada pelas oportunidades que teria para fazer o que não estava a conseguir fazer cá e manter o meu trabalho ativista. Ainda estou na fase de transição, a aprender alemão, mas o objetivo é que o ganho venha a ser maior. Para já, estou a continuar a trabalhar com o Climáximo e estou a começar a conectar-me com grupos lá. Não quero ser uma pessoa a trabalhar para outro sítio qualquer enquanto vivo lá, quero envolver-me nos assuntos locais.


A tua relação com a Alemanha começou com o “Blog, Engage, Act”, o projeto em que trabalhaste no Goethe-Institut?

Se eu queria encontrar trabalho nesta área, teria de ser num país com dinheiro e que fosse um centro de poder. Queria ir para um sítio que não fosse longe de Portugal e também havia uma série de organizações que eu já conhecia, como o Ende Gelände, na qual o Climáximo se inspira bastante também — até já fomos à Alemanha fazer ações com eles. E a mim, fazia-me sentido estar lá.

O trabalho com o “Blog, Engage, Act” foi bastante interessante porque tivemos um espaço que muitas vezes não nos é dado, e que eu acho que é nosso por direito, nem que seja pela urgência e pela dimensão da crise climática. No “Blog, Engage, Act” sempre tivemos uma liberdade muito grande, nunca nos disseram como é que devíamos falar sobre o assunto. O meu papel era trabalhar em articulação com a Matilde Alvim. Ela escrevia um texto e eu fazia o lado das redes sociais. Foi bastante importante para nós o facto de ser um projeto com ligação com outros ativistas a nível europeu e acho que foi uma boa base de trabalho.

E que importância achas que instituições como o Goethe-Institut têm ao investir em assuntos como este que, como dizes, nem sempre têm muito espaço mediático?

Acho que há um papel cultural que é fundamental. Às vezes podemos ser muito pragmáticos e pensar que resolvemos a crise climática se fizermos um mapeamento em Portugal das 250 infraestruturas em Portugal que precisam de fazer uma transição, e o que pode fazer sentido é bloquear esses sítios com ações de desobediência civil não violenta. Agora, acho que só vai ser uma ação eficaz se houver um pilar cultural de mudança de fundo. Aí se calhar temos alguns paralelos interessantes como nos direitos LGBTQIA+ em que até somos um país que não está muito atrás da liderança global, mas depois vamos ver o que é a sociedade e a cultura e há um desfasamento entre o que é a lei e o que é o contrato social que existe para aplicação desta lei. Com a questão climática, também existe isso. Se não criarmos condições culturais para isto ser uma ideia de longo prazo, nós temos que virar a economia para o cuidado com a vida. Em vez de ser o cuidado com o lucro, o cuidado com a vida. Se essa mudança estrutural não acontece, temos meio caminho andado para todas as mudanças que fizemos agora serem revertidas. O papel de instituições como o Goethe-Institut é fazer um trabalho de fundo, de sensibilização, que contribuiu para uma mudança de consciência.