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Entrevista a Joana Sousa
"Há muita gente que vê no cinema do real uma possibilidade de pensar o mundo"

Joana Sousa no jardim do Goethe-Institut
Foto: Teresa Althen © Goethe-Institut Portugal

Diretora de programação do Doclisboa, Joana Sousa está habituada a pensar o mundo através das imagens em movimento. Nesta entrevista “De Futuro”, olha para as histórias que não cabem na História oficial do cinema e conta o que mais a entusiasma no cinema alemão que se está a fazer agora.

De Carolina Franco

Diretora de programação do Doclisboa, Joana Sousa está habituada a pensar o mundo através das imagens em movimento. Nesta entrevista “De Futuro”, olha para as histórias que não cabem na História oficial do cinema e conta o que mais a entusiasma no cinema alemão que se está a fazer agora.

Joana Sousa é um dos rostos que associamos ao Doclisboa - Festival Internacional de Cinema. Vemo-la a apresentar os destaques da programação à imprensa, a moderar mesas redondas, a conversar à porta do Cinema São Jorge sobre o que está por vir. Ouvimo-la muitas vezes a pensar o cinema, e o seu futuro, em voz alta.

Quando o festival pelo qual dá a cara surgiu, nos anos 90 pela mão da Apordoc - Associação pelo Documentário, ainda não era uma jovem cineasta. Pelo menos conscientemente. Mas cada vez que nos fala do Doclisboa, há uma noção da importância do passado para construir o futuro que não quer deixar de lado. Acredita que é importante não esquecer o caminho que se fez para que hoje estejamos onde estamos — na História do cinema e do ativismo — , mas que se deve encarar o futuro agora, já no presente. Como? Pensando sobre ele através das imagens, conversando, questionando.

Em 2019, ao lado de Miguel Ribeiro e Joana Gusmão, assumiu a direção do festival de cinema do real que todos os anos agita o circuito cinematográfico lisboeta. É realizadora e curadora, membro do coletivo Rabbit Hole, onde tem feito trabalho de produção, programação e criação artística em vários projectos transdisciplinares. Pensa o cinema em muitas frentes e convida-nos a pensar com ela. Traz pela mão realizadoras como Ulrike Ottinger e Helke Misselwitz, e tantas outras que deixaram uma semente para que algo florescesse no seu modo de encarar a vida. É por isso que nunca anda sozinha.

Carolina Franco: Sendo o documentário um género que olha sobretudo para o passado, como é que situas o futuro neste género cinematográfico?

Joana Sousa: Acho que a questão como a colocas, de o cinema documental usar o passado e com isso provocar reflexões que depois têm consequências numa criação de futuro, não acontece só no cinema. Para mim, em toda e qualquer arte em que haja uma espécie de condensação de vontades, de desejos, de questões, de ponderações, isso acaba por surgir. Nós enquanto indivíduos não nos conseguimos abstrair de onde é que viemos, onde é que pertencemos, para onde é que vamos… há sempre uma construção cultural, social, económica que parte muito desse caminho que percorremos enquanto sociedade para depois pensarmos para onde vamos. Nessa linha, o cinema do real, pondo-o em relação a um cinema que usa estruturas mais ficcionais, talvez o tenha feito de uma maneira um bocadinho mais significativa porque está alinhado com a realidade. Tem uma matéria prima com uma consistência à qual não pode fugir muito. Pode construir muitas camadas sobre essa realidade, mas é daí que parte. E obviamente um artista que esteja a trabalhar num filme que parte de uma abordagem documental absorve todos estes contextos, porque resgata sempre as emanações que tem à sua volta. Quase podia dizer que é um cinema mais poroso, no sentido em que absorve e aí reside e mantém uma certa reação à contemporaneidade.

Essa reflexão acaba por se expandir a partir do momento em que crias um festival de cinema do real e que convocas uma série de reflexões para dentro desse festival. Há sempre uma ideia de experiência coletiva numa ida ao cinema, mas também essa experiência se abre quando pensamos num festival como o Doclisboa. O que há de irrepetível num evento que se organiza para projetar e pensar o cinema?

O Doclisboa é organizado pela Apordoc - Associação pelo Documentário, que surgiu nos anos 90 exatamente porque havia uma certa movimentação de pessoas que começaram a fazer documentários com uma vontade de explorar outras abordagens fora de certos cânones que existiam em Portugal, mas que também queriam criar uma plataforma para os discutir, bem como para trazer outras cinematografias que não eram muito mostradas cá em Portugal. A Apordoc, através também dos “Encontros Internacionais de Cinema Documental”, no Centro Cultural Malaposta, começou a ter uma vontade de promover essa possibilidade de criar um cinema documental que não fosse só televisivo, dentro dos formatos tradicionais, que tratasse outros assuntos que não só o cinema etnográfico. Como pensar esse futuro do documentário? Aí, o festival Doclisboa foi criado para dar a oportunidade aos realizadores que eram formados na altura de pensarem onde é que os seus filmes poderiam ser mostrados, quem os poderia mostrar, quem os iria pensar.

Em 2022 o Doclisboa vai fazer 20 anos, e nesses 20 anos o festival evolui não só na forma como se pensa estrategicamente enquanto entidade cultural em Portugal, mas também nas abordagens estéticas e éticas que se têm explorado no cinema e que surgem na programação. Para nós é importante que haja lugar para a tentativa, para a falha, para a experimentação, e que não se pense que já chegámos ao que é suposto ser o cinema do real. Ainda continua a haver espaço para chegarmos a outros sítios.

Sentes que tem havido alguma consequência do debate que vai sendo feito no Doclisboa?

Medições quantitativas são possíveis na medida em que no final de cada festival fazemos um trabalho de balanço para percebermos o que foi feito e como foi feito. Ao longo destes 20 anos, conseguimos perceber a quantidade de filmes portugueses e novos realizadores que surgem. Há muitas pessoas da geração dos anos 90 que continuam a trabalhar, mas também há muita gente que está agora a sair da faculdade e que vê no cinema do real uma possibilidade de pensar o mundo. É muito interessante pensar que comparando com o cinema mais ficcional, o cinema documental tem uma preponderância muito maior de pessoas que se identificam como mulheres, não só na realização, mas também nas funções criativas e técnicas, também porque historicamente o cinema documental tem um sistema de produção um bocadinho diferente que possibilitam pensar hierarquias diferentes dentro de uma equipa.
E no Doclisboa, queremos pensar não só o que vemos, mas também como fazemos. Há certas estruturas de poder dentro do cinema, há caminhos que foram traçados esteticamente — e com tudo isso, como é que pensamos o futuro, o que está por vir? Há questões políticas, financeiras e sociais que afetam a maneira como trabalhamos e o festival tenta ser uma plataforma para pensar essas temáticas.

No fundo, para pensar o mundo. Tem havido sempre um comprometimento do festival com movimentos e causas sociais do agora — dos feminismos a LGBTQIA+, da luta anti-racista ao movimento dos trabalhadores. Podemos pensar o Doclisboa como uma plataforma interseccional que, através do cinema, permite que se cruzem os diferentes temas que levanta?

O Doclisboa é isso porque é impossível pensar de outra forma. Qualquer filme é interseccional na sua essência porque eu e tu somos pessoas com várias características, cada uma de nós reúne em si várias questões, um contexto, várias incertezas; e um filme reflete isso tudo. E um festival também tem de refletir. Nós pensamos no cinema como um espaço onde se pode trabalhar todas essas questões, não descurando a potencialidade artística de um filme. É importante para nós que os filmes que mostramos sejam objetos artísticos que inerentemente também se debruçam sobre determinadas questões, dependendo do contexto em que foram criados. Pensar o cinema nessa pluralidade de questões faz com que também seja muito mais interessante o cinema que é mostrado, o cinema que é pensado e o cinema que é feito, porque aí estamos num trabalho constante de complexificação da História do cinema. À medida que o trabalho de investigação em festivais de cinema ou em arquivos e centros de investigação avança, percebemos que a História do cinema é muito mais rica do que aquilo que nos foi ensinado até agora. Esses olhos estão a abrir-se. Um realizador indígena se calhar percebe que não está assim tão sozinho na História do cinema e, afinal, o cinema também lhe pertence. O cinema pertence a muito mais pessoas do que foi condicionado ao longo destes cento e tal anos de História oficial.

Programar é sempre um ato político, mesmo quando selecionas um filme pelo caráter estético e experimental?

Qualquer filme foi feito com uma determinada vontade, com um determinado desejo, e o ato de o mostrar é político porque vou mostrá-lo a várias pessoas, que podem ter leituras diferentes, e nunca se sabe de que maneira é que esse filme pode ser uma ferramenta para determinada pessoa crescer enquanto indivíduo. Qualquer filme pode ajudar a construir uma sociedade mais diversa e mais complexa. E possivelmente melhor. Qualquer gesto coletivo é político na sua essência, porque nós funcionamos um em relação ao outro, e um filme é isso: um momento de partilha e discussão coletiva, mesmo quando não há um debate no final do filme. Vais para casa, esperamos que o filme te faça sentir alguma coisa, e mesmo que seja um filme abstrato que te traz alguma sensação. Se essa sensação fica contigo vai ter repercussões na maneira como pensas o mundo, isso já é político.

E para programar — e para conseguir erguer um festival durante 20 anos — é preciso ter dinheiro. Qual é a importância dos parceiros do Doclisboa para que o festival se consiga realizar?

O festival é um ato coletivo não só porque a nossa equipa é composta por várias pessoas, mas também porque é feito com a vontade de várias entidades. Os nossos parceiros são extremamente importantes, era impossível o festival conseguir criar a plataforma que cria e conseguir trazer realizadores sem os parceiros. No caso do Doclisboa, ao longo de todos estes anos, a nossa rede de parceiros tem crescido para apresentarmos uma programação mais diversa. Este é um festival de cinema para toda a gente, tem uma função pública de promoção da cultura, e parcerias como a que temos com o ICA - Instituto do Cinema e Audiovisual e a Câmara Municipal de Lisboa reforçam esse lugar. Depois temos outros parceiros que nos ajudam a construir certos lugares dentro da programação, como é o caso do Goethe-Institut, que é nosso parceiro há muitos anos. Há um lugar muito livre de pensarmos com o Goethe-Institut, como em 2018 quando fizemos a retrospectiva da Alemanha de Leste, que fez um levantamento de filmes que raramente tinham sido mostrados fora da Alemanha.


Nessa retrospectiva houve um debate sobre o feminismo da Alemanha de Leste e a sua relação com a queda do muro que me fez pensar como o Doclisboa pode ser também uma forma de descobrir outras visões sobre um determinado lugar. Achas que é uma visão um bocadinho romântica, esta de que o cinema nos pode aproximar de outras realidades mais ou menos íntimas, mais ou menos políticas? 

Para mim, romântico não é pejorativo, de todo. Há muito desejo no romance, e se dermos a volta a essa palavra acho que pode ser uma coisa boa. Há uma certa utopia dentro do romance ou de um gesto romântico; há uma vontade muito grande de conseguir alguma coisa. Dando a volta a esse termo, para mim é romântico no sentido em que o cinema é esse espaço para pensar possibilidades passadas e futuras. Não é um romântico fora da realidade, é um romântico com uma base concreta num amor real e numa curiosidade. Quando uma pessoa está apaixonada tem uma curiosidade muito grande pelo outro, e acho que o cinema do real parte muito dessa curiosidade pelo Outro — o outro indivíduo, o outro-sociedade, o outro lado. Essa conversa dos feminismos na Alemanha de Leste, embora não tenha sido propriamente sobre cinema, partiu daí, porque no cinema da Alemanha de Leste, que foi feito entre os anos 60 e 80, havia vários filmes como os da realizadora Helke Misselwitz que tornavam inevitável pensarmos nas questões de género. Embora os filmes dela não estejam limitados a uma ação feminista, é interessante pensar como é que esses filmes se inscrevem nessa luta pelos direitos das mulheres porque essas realizadoras no contexto dessa perspetiva, elas próprias estavam a batalhar pelo seu lugar de fala, pelo seu lugar de ação, pelo seu lugar na História do cinema.

O mesmo com a Ulrike Ottinger?

Usando o termo “romântico”, a Ulrike Ottinger é o epítome da realizadora romântica na medida em que ela se apaixona e se entrega completamente aos sítios por onde ela passou, pensando no cinema mais etnográfico dela. Mas depois os contos de fadas que conta, que se misturam com lendas, com Drag Queens, com toda uma panóplia de coisas que ela abarca e que para ela eram importantes, criam uma coisa que pode ser extremamente política na sua concepção. Nos contos de fadas da Ulrike Ottinger não há uma finalidade moral, mas há o pensar a moralidade. O cinema dela, que muitas vezes pode ser rogado como um cinema fantástico, é usado para ela se libertar de todas as restrições que lhe foram impondo no seu trabalho, não só enquanto mulher mas também enquanto realizadora. Parece que há uma constante vontade de te categorizarem e a partir daí só podes fazer o cinema assim. O caráter romântico dela diz precisamente que o meu ser apaixonado é como eu o vejo, então posso criar infinitas emanações desse amor.

O olhar sobre “o outro” foi sendo um pouco subvertido com realizadoras como as que estás a mencionar agora. Como é que se passa de um cinema documental que, como já disseste, é importante para a História do cinema, mas em que há um olhar assumido sobre “o outro”, e se subverte para outras narrativas em que esse outrora “outro” se pensa a si mesmo?

Ao longo dos cento e tal anos de cinema, esse cinema que olha o outro de um determinado ponto de vista e com determinados preconceitos que reduzem esse sujeito a um objeto existe e no Doclisboa, principalmente nos programas em que mostramos filmes mais antigos, é importante continuar a mostrá-los. Mas é cada vez mais importante contextualizá-los no papel que desempenharam, trazendo também a questões contemporâneas. Ao apagar completamente alguns filmes que foram feitos, pode haver um silenciamento perigoso de certas ferramentas que podem ser usadas para fins politicamente não tão expansivos como queremos usar.

E como é que olhas para o cinema alemão da atualidade? Que pessoas destacarias que estão, neste momento, a projetar um futuro no seu cinema? 

O cinema alemão de hoje em dia é um cinema, acima de tudo, muito plural. Tem havido um pensamento muito claro de estruturas de financiamento, de estruturas de apoio, de estruturas de arquivo e de uma manutenção também da memória cinematográfica do país, que em Portugal é muito mais precária. Há uma estrutura que permite que exista uma pluralidade muito grande de cinema porque a sociedade alemã hoje em dia também é uma sociedade muito plural, que tem ganho muito ao longo dos últimos anos com várias culturas que se foram entranhando na cultura alemã. O Harun Farocki, que morreu há pouco tempo, para mim era um dos realizadores mais importantes e que também foi acompanhando a atualidade da imagem em movimento. O Daniel Kötter tem trabalhado de uma maneira muito interessante as relações neo-colonialistas e de certas ex-colónias de potências europeias e como é que os interesses capitalistas influenciam essas comunidades. Mais do que estar a nomear pessoas em concreto, acho que é um cinema que se tem mantido muito atento ao mundo, mas de uma maneira muito característica. É muito analítico na medida em que reflete de uma maneira muito interseccional a própria potência do cinema enquanto ferramenta política e estética também. Há um futuro muito grande no cinema alemão. Tenho uma vontade muito grande de perceber o que aí vem.